BRASÍLIA - A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) pode pedir documentos e perícias que levem à localização de ossadas de desaparecidos políticos, além de reconhecer os desaparecidos e fazer reparação aos familiares. Em seus 30 anos, o colegiado apurou as circunstâncias em que dezenas de vítimas da ditadura foram mortas e emitiu os atestados de óbito delas.
Entre os casos mais emblemáticos estão os de Rubens Paiva, que teve a história retratada em “Ainda Estou Aqui”, e de cinco desaparecidos políticos cujas ossadas estavam em um cemitério de São Paulo. Há diversas investigações ainda em andamento aguardando, por exemplo, a análise do DNA dos corpos de possíveis vítimas. Como das ossadas de uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, na região Oeste de São Paulo.
Até então, era propagado que aquela área do cemitério recebia só corpos de indigentes – moradores de rua e pessoas cujos corpos não foram reclamados pelas famílias. Tudo começou a mudar quando o jornalista Caco Barcelos decidiu consultar arquivos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, durante o trabalho de pesquisa para seu livro “Rota 66: a história da polícia que mata”.
Nas fichas de alguns supostos indigentes enterrados no cemitério de Perus havia a letra “T”, escrita à mão com tinta vermelha. Descobriria, com um informante, que significava “terrorista” e serviria para desaparecidos políticos, enterrados com nomes falsos. Com mais tempo de apuração, aquilo seria noticiado em reportagem investigativa exibida pela TV Globo.
Mas, para completá-la, Caco precisava comprovar a existência da vala clandestina. A vala de Perus foi descoberta em 1990, sendo aberta em 4 de setembro do mesmo ano, com autorização da então prefeita Luiza Erundina (PT). Ela fez questão de estar presente, ao lado de dezenas de jornalistas. A reportagem especial de Caco levaria mais tempo para ser exibida.
Com a descoberta de 1.049 sacos com ossadas de pessoas ao longo de uma vala de 30 metros de extensão, com 50 centímetros de largura e 2,70m de profundidade, logo veio a suspeita de que ali havia alguns desaparecidos da ditadura militar. Erundina decidiu que a responsabilidade de identificação das ossadas era do Departamento de Medicina Legal da Universidade de Campinas (Unicamp).
Com a criação da CEMDP, o trabalho de identificação ou para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Suspeitava-se que haviam misturadas na vala ossadas de 1.300 a 1.400 pessoas, sendo finalmente identificadas 1.049, das quais 901 de interesse da CEMDP, que tiveram o material genético coletado.
Até 2022, foram identificados 40 possíveis mortos pela ditadura, sendo 35 homens e 5 mulheres. Foram as compradas as características de sexo, idade e altura compatíveis com das osssadas com a dos 40 desaparecidos políticos que teriam sido enterrados no lugar por agentes da ditadura militar. Destes, só cinco tiveram a identidade confirmada.
Entre as ossadas não identificadas, haviam algumas de crianças e adolescentes, além de outros indigentes, possivelmente executados — alguns com sinais de tortura — por “esquadrões da morte”, grupos paramilitares com atuação semelhante às atuais milícias.
Apenas em 21 de julho de 1995, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso discutia a elaboração de uma lei que oficializaria a morte de 136 desaparecidos políticos, foi exibida no programa Globo Repórter a história completa da vala de Perus, contada por Caco Barcelos.
Já no governo de Jair Bolsonaro, o trabalho de identificação das ossadas foi fortemente comprometido e quase inviabilizado por medidas depois revertidas na justiça. Damares Alves, então ministra dos Direitos Humanos, chegou a ameaçar a interrupção física dos trabalhos com a transferência das ossadas para Brasília.
A deputada federal Fernanda Melchionna (Psol-RS) protocolou em janeiro um projeto para suspender a remuneração de militares denunciados por violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade praticados na ditadura militar.
Pela proposta, a suspensão será mantida até decisão definitiva do processo judicial. No intervalo da tramitação, o militar não terá direito a receber nenhum tipo de subsídio, adicional ou gratificação relacionados ao seu cargo ou função pública.
O projeto prevê que a interrupção do pagamento da remuneração e proventos pode ser cancelada, caso haja elementos que provem sua inocência. Em caso de absolvição definitiva, o militar terá direito ao pagamento retroativo dos valores suspensos.
Melchionna alega que a proposta tem como respaldo o Estatuto dos Militares, em que são descritos tanto os direitos como deveres dos membros das Forças Armadas. Ela cita o caso de Rubens Paiva, retratado no filme “Ainda Estou Aqui”.
Cassado após o golpe de 1964, o ex-deputado federal foi levado da casa dele, no Rio de Janeiro, por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), no feriado de 20 de janeiro de 1971 (dia de São Sebastião).
Ele foi violentado no quartel da Força Aérea Brasileira (FAB). Depois, foi entregue a militares do Exército nos porões do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Rubens Paiva foi torturado e assassinado na mesma noite ou nos dias seguintes, segundo o apurado pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014.
Apenas mais de três décadas depois o governo brasileiro reconheceu sua morte, apesar de nunca terem encontrado o corpo. Eunice Paiva, a viúva, somente obteve o atestado de óbito em fevereiro de 1996.
Após o lançamento e sucesso de bilheteria de Ainda estou aqui, soube-se que o governo federal paga R$ 140 mil por mês aos militares denunciados pelo assassinato de Rubens Paiva.
O Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco militares reformados, em 2014: José Antônio Nogueira Belham, Jacy Ochsendorf e Souza, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.
Há 10 anos, a Justiça aceitou a denúncia e os militares tornaram-se réus. Dos cinco, três morreram (Sampaio, Jurandyr e Campos) desde o início do processo que está no Supremo Tribunal Federal (STF).
A proposta também incorpora o reconhecimento de violações documentadas por decisões da Comissão Nacional da Verdade, que investigou e reconheceu graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil, especialmente durante a ditadura.
A partir dos casos de Rubens Paiva e de outros dois opositores à ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante o regime em vigor entre 1964 e 1985, com repercussão geral. A decisão, tomada semana ada, foi unânime entre os ministros, em análise no plenário virtual da Corte.
São três os processos que motivam o debate no tribunal. Dois deles são recursos extraordinários com agravo (ARE) que tratam do desaparecimento forçado de Paiva e do jornalista Mário Alves, cujos corpos nunca foram encontrados. O outro é um ARE que diz respeito ao assassinato do militante Helber Goulart, da Ação Libertadora Nacional (ANL).
Nos três casos, o MPF questiona decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que entenderam que os crimes estavam abrangidos pela Lei da Anistia e encerraram as ações penais contra os acusados.
O STF decidiu discutir se a Lei da Anistia abrange crimes permanentes que até hoje estejam sem solução, como os de ocultação de cadáver. Ao reconhecer a repercussão geral desses três novos casos, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a Corte amplia o debate para crimes com “grave violação de direitos humanos”, conforme proposta do MPF.
Para o órgão, sequestro e cárcere privado também têm natureza permanente e não devem ser atingidos pela Lei da Anistia. A tese a ser fixada pelo STF no julgamento do mérito deverá ser seguida pelas demais instâncias do Judiciário.
A Lei da Anistia, de 1979, perdoou os crimes políticos e conexos cometidos apenas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Em 2010, o STF validou a norma com base na Constituição de 1988.