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Brasília nos anos de chumbo: como a ditadura militar afetou a vida na capital
Recém-inaugurada, capital assistiu destituição de Jango e forte repressão nas ruas e em sua principal universidade após golpe deflagrado em 31 de março de 1964
BRASÍLIA – Brasília perdeu a inocência cedo. Inaugurada em 21 de abril de 1960, data do aniversário de morte de Tiradentes, mártir na luta pela liberdade do país, a capital tornou-se um dos principais cenários da ditadura militar, das primeiras horas da execução do plano golpista, em 31 de março de 1964, até o fim do regime, em 1985.
Além de assistir à destituição do presidente João Goulart, o Jango, em uma manobra de congressistas opositores, a nova capital, que substituiu o Rio de Janeiro como sede do poder nacional em 1960, abrigou seis centros de tortura e violações, onde moradores foram mantidos presos e violentados.
Dois deles ficavam nos ministérios da Marinha e do Exército, perto do Palácio do Planalto. Outros ficavam na Superintendência da Polícia Federal, no fim da Asa Sul; na unidade do DOI-Codi, na área central; no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), no Setor Militar Urbano; e no Batalhão de Guarda Presidencial, no fim da Asa Norte.
Esses locais foram apontados no relatório da Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011 pelo governo federal durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT) para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar. Dois desses locais foram citados em outro colegiado dedicado ao mesmo tema.
Torturas sob gabinetes de ministros
Quatro jornalistas contaram ter sido torturados nas sedes dos ministérios da Marinha e Ministério do Exército. Os relatos foram coletados pela comissão instalada pelo Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal em 2013, que ouviu outros 16 profissionais de imprensa vítimas do regime ditatorial.
“Conforme os relatos, torturas ocorriam a menos de 500 metros do Palácio do Planalto, em andares abaixo dos gabinetes dos ministros. Essas ações são uma prova cabal que eram de conhecimento dos comandantes da Forças Armadas as ilegalidades e violências do regime”, ressalta o jornalista Chico Sant’Anna, 67 anos.
Tendo trabalhado em redações de Brasília nos anos 1970 e 1980 e integrado a comissão do sindicato dos jornalistas, Chico cita outras agressões aos profissionais de imprensa que atuavam em Brasília à época. “Houve jornalistas sequestrados levados para tortura e até simulação de fuzilamentos em unidade do Exército”, afirma.
“A comissão também apontou uma série de ações da ditadura contra os profissionais de imprensa, como confisco de equipamentos, violação do sigilo de correspondências pessoais e de reportagens enviadas por telex e malas postais, vetos a credenciais e pedidos de demissões sumárias”, conta Chico.
Encarcerado e torturado por 25 dias
Romário Cezar Schettino deixava o trabalho, na área central de Brasília, no início da noite de 15 de junho de 1973, quando foi abordado por policiais à paisana armados com metralhadoras. Quatro deles desceram de uma caminhonete da Polícia Federal e o colocaram no carro dele, um Fusca.
À época, Romário tinha 22 anos e trabalhava como escriturário no Banco Central (BC), na área central de Brasília. Ele havia ingressado na instituição por meio de concurso público. Também cursava história na Universidade de Brasília (UnB), onde militava contra a ditadura militar.
As atividades políticas começaram no ensino médio, em Caratinga, cidade mineira do Vale do Rio Doce, onde nasceu. “Eu frequentava repúblicas e lutava contra a repressão, mas não participava da guerrilha, luta armada”, relatou à reportagem. Preso na capital federal, Romário foi torturado por dias, em diferentes locais.
“Certa vez, após espancamentos e choques elétricos, tive um desmaio. Pedia água, mas fui informado que não deveria beber água porque poderia ocorrer uma eletrólise e a morte era certa”, lembrou. “Provavelmente por orientação médica, fui levado a uma cela do PIC, no Setor Militar, onde tive uma crise renal.”
Na unidade, dentro do Batalhão de Polícia do Exército de Brasília, após muito gritar por socorro, ele foi atendido por um médico, que aplicou uma injeção de buscopan. “Nesse dia, ouvi muitos gritos e choros nas celas vizinhas, acompanhados de sons de bordoadas de cassetetes”, relatou.
Os militares libertaram Romário 25 dias após o sequestro, sem nenhuma acusação formal. “Uma viatura me abandonou no meio do cerrado no fim da Asa Norte. Me mandaram seguir ao estacionamento de um supermercado da 312 Norte. Encontrei meu carro. Dentro dele achei duas placas frias, usadas para outras prisões igualmente ilegais”, contou.
Anos depois, trabalhando como jornalista, Romário reconheceu alguns elementos dos locais para onde havia sido levado naquele período de cárcere. “Estive no subsolo do Ministério do Exército, na Polícia Federal e no PIC. Identifiquei as persianas do ministério, as celas da PF e os sons das cornetas no PIC”, elencou, na conversa com O TEMPO, 52 anos após as agressões.
A ditadura interrompeu as vidas profissional e estudantil de Romário. Ele perdeu o emprego no BC e foi jubilado do curso de história da UnB. Ficou no Paraguai por um período, voltou ao Brasil e depois buscou exílio na Europa. Em 1974, chegou ao Sul da França, onde trabalhou em serviços braçais para assegurar a sobrevivência.
Ao voltar ao Brasil em 1976, Romário começou a cursar jornalismo na UnB, mas não conseguiu ser reintegrado ao Banco Central. Em 30 de março de 2023, a Comissão de Anistia aprovou pagamentos de indenizações a Romário e a outros três cidadãos brasileiros na condição de perseguidos políticos durante a ditadura militar.
Sequestrado ao deixar redação de revista
Armando Rollemberg foi outro jornalista levado por agentes da repressão em Brasília. O episódio aconteceu em 1974, quando tinha 20 anos e era repórter novato da revista Veja. “Estava na redação. Ligaram e me disseram pra descer. Fui na maior inocência. Dois homens me renderam e me colocaram em uma Veraneio”, lembrou.
Encapuzado, foi levado para um prédio próximo. “Quando a Veraneio entrou em um vão, que parecia uma garagem subterrânea, vi várias pessoas sendo torturadas”, contou. Ele identificou vozes de conhecidos. E, pelo tempo em que rodaram com ele e a arquitetura do edifício, deduziu ser um ministério.
Armando recebeu choques nas mãos, enquanto era questionado sobre uma viagem de “mochilão” que havia feito com amigos pela América do Sul, meses antes. Queriam saber onde haviam ido, com quem e sobre o que haviam conversado. Tudo depois de a polícia apreender o diário sobre a viagem escrito por um dos amigos.
“Naquele caderninho estava o relato da viagem, com os nomes. A gente havia encontrado alguns exilados, como o Darcy Ribeiro e o Glauber Rocha. Tudo por acaso. A gente estava em um bar ou restaurante aí vinha um brasileiro e nos chamava para beber algo junto. E acabávamos apresentados a essas pessoas”, explicou Armando.
Ele foi liberado oito horas depois do sequestro. Após um dos motoristas da Veja ter visto ele ser sequestrado, seus chefes começaram a buscar informações do seu paradeiro. Acionaram autoridades, incluindo seu pai, Armando Rollemberg, que era ministro do Tribunal Federal de Recursos, atual Superior Tribunal de Justiça (STJ).
UnB sofreu série de invasões
Principal instituição de ensino superior da capital, a UnB foi uma das mais sufocadas pelos militares, com constantes invasões ao campus e perseguições a estudantes e professores. Teve reitor cassado e três dos seus alunos na lista oficial de desaparecidos durante o regime.
A UnB foi criada em 1962 com um modelo inovador para a educação superior, que incluía a valorização da interdisciplinaridade, a flexibilidade dos currículos, a centralidade da atividade de extensão e a organização dos institutos centrais que promoviam uma convivência entre estudantes de diversos cursos.
Um dos seus idealizadores, Darcy Ribeiro, que também foi seu primeiro reitor, defendia a educação humanista, aliada à excelência acadêmica, científica e cultural. Acima de tudo, a instituição deveria unir o que havia de mais moderno em pesquisas tecnológicas com uma produção acadêmica capaz de melhorar a realidade brasileira.
“A UnB virou alvo dos militares por causa da natureza vanguardista e profundamente democrática, com grande ênfase concedida aos órgãos colegiados e um ambiente de pesquisa e interação com a sociedade civil, que foi muito intenso desde o início das suas atividades”, diz Cristiano Paixão, professor da Faculdade de Direito da UnB.
“Regimes autoritários não toleram conviver com o pensamento crítico”, completa o docente, que integrou a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, criada em 2012 para apurar violações aos direitos humanos e às liberdades individuais na UnB durante a ditadura militar.