DESAFIOS

‘Ainda Estou Aqui’: Ossadas estão guardadas à espera de identificação

Em seus 30 anos, a comissão sobre mortos e desaparecidos apurou as circunstâncias em que vítimas da ditadura foram mortas e emitiu os atestados de óbito

Por Renato Alves
Publicado em 02 de março de 2025 | 08:18

BRASÍLIA - A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) pode pedir documentos e perícias que levem à localização de ossadas de desaparecidos políticos, além de reconhecer os desaparecidos e fazer reparação aos familiares. Em seus 30 anos, o colegiado apurou as circunstâncias em que dezenas de vítimas da ditadura foram mortas e emitiu os atestados de óbito delas.

Entre os casos mais emblemáticos estão os de Rubens Paiva, que teve a história retratada em “Ainda Estou Aqui”, e de cinco desaparecidos políticos cujas ossadas estavam em um cemitério de São Paulo.  Há diversas investigações ainda em andamento aguardando, por exemplo, a análise do DNA dos corpos de possíveis vítimas. Como das ossadas de uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, na região Oeste de São Paulo.

Até então, era propagado que aquela área do cemitério recebia só corpos de indigentes – moradores de rua e pessoas cujos corpos não foram reclamados pelas famílias. Tudo começou a mudar quando o jornalista Caco Barcelos decidiu consultar arquivos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, durante o trabalho de pesquisa para seu livro “Rota 66: a história da polícia que mata”.

Nas fichas de alguns supostos indigentes enterrados no cemitério de Perus havia a letra “T”, escrita à mão com tinta vermelha. Descobriria, com um informante, que significava “terrorista” e serviria para desaparecidos políticos, enterrados com nomes falsos. Com mais tempo de apuração, aquilo seria noticiado em reportagem investigativa exibida pela TV Globo.

Mas, para completá-la, Caco precisava comprovar a existência da vala clandestina. A vala de Perus foi descoberta em 1990, sendo aberta em 4 de setembro do mesmo ano, com autorização da então prefeita Luiza Erundina (PT). Ela fez questão de estar presente, ao lado de dezenas de jornalistas. A reportagem especial de Caco levaria mais tempo para ser exibida.

De mais de mil ossadas, só cinco foram identificadas

Com a descoberta de 1.049 sacos com ossadas de pessoas ao longo de uma vala de 30 metros de extensão, com 50 centímetros de largura e 2,70m de profundidade, logo veio a suspeita de que ali havia alguns desaparecidos da ditadura militar. Erundina decidiu que a responsabilidade de identificação das ossadas era do Departamento de Medicina Legal da Universidade de Campinas (Unicamp). 

Com a criação da CEMDP, o trabalho de identificação ou para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Suspeitava-se que haviam misturadas na vala ossadas de 1.300 a 1.400 pessoas, sendo finalmente identificadas 1.049, das quais 901 de interesse da CEMDP, que tiveram o material genético coletado. 

Até 2022, foram identificados 40 possíveis mortos pela ditadura, sendo 35 homens e 5 mulheres. Foram as compradas as características de sexo, idade e altura compatíveis com das osssadas com a dos 40 desaparecidos políticos que teriam sido enterrados no lugar por agentes da ditadura militar. Destes, só cinco tiveram a identidade confirmada. 

  • Aluízio Palhano (1922-1971): Filho de um fazendeiro de Pirajuí (SP), se mudou com a família para Niterói (RJ) quando tinha 10 anos. Aos 21 foi aprovado num concurso do Banco do Brasil (BB). Formou em direito pela Universidade Federal Fluminense. Também fez carreira como sindicalista. Quando presidia o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), organização intersindical de abrangência nacional, veio a ditadura, que cassou seu mandato e seus direitos políticos. Aluísio também foi exonerado do BB. Asilou-se no México entre julho e dezembro e transferiu-se para Cuba no ano seguinte. Em 1970, voltou ao Brasil como clandestino e entrou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Preso, com 48 anos, Aluísio teria sido torturado até a morte na noite de 20 de maio de 1971, no DOI-Codi. Casado e com dois filhos, foi dado como desaparecido. Não foi encontrado qualquer registro da entrada dele no Cemitério Dom Bosco.
  • Dênis Casemiro (1942-1971): Nascido em Votuporanga (SP), onde trabalhava como lavrador e pedreiro, mudou-se em 1967 para a capital de São Paulo em busca de trabalho com melhor remuneração. Foi itido como operador de máquinas na fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo. Entrou na Ala Vermelha, dissidência do PCdoB que havia optado pela luta armada. Acredita-se que Dênis, já na clandestinidade, foi capturado e preso em abril de 1971. Conduzido ao Dops de São Paulo, foi interrogado e torturado por um mês, sendo fuzilado em 18 de maio de 1971. O corpo dele foi levado para o cemitério de Perus e enterrado um dia depois, na sepultura 82 da rua 14, conforme anotação feita no livro de registros da necrópole. “De cor branca, sexo masculino, com 40 anos presumíveis e todos os demais dados ignorados”, dizia a nota.
  • Dimas Casemiro (1946-1971): Quatro anos mais novo que Dênis Casemiro, teve a ossada identificada em 2018, 27 anos após a identificação dos restos mortais de seu irmão. Em Votuporanga, Dimas trabalhou como corretor de seguros e tipógrafo. Em 1969, se mudou para a capital paulista com a esposa e o filho de 2 anos. Em São Paulo foi recrutado para a Ala Vermelha, em que já militava seu irmão. Ainda em 1969, Dênis foi para a VPR e se mandou para a região Norte do país, para formar um foco guerrilheiro. Dimas ajudou a organizar o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Morreu em 17 de abril de 1971, após agentes da repressão descobrirem a casa onde ele se escondia. Saiu atirando. Enquanto corria, levou quatro tiros de fuzil nas costas. O corpo foi sepultado no cemitério de Perus. Em 1975, tiraram os restos mortais do túmulo. O paradeiro deles só foi descoberto com o encontro da vala clandestina.
  • Flávio Carvalho Molina (1947-1971): Nascido no Rio de Janeiro, estudava química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entrou na faculdade em 1968. Em 1969, já na Ação Libertadora Nacional (ALN), trancou a matrícula e entrou para a clandestinidade. Procurado, cruzou a fronteira com o Uruguai e partiu para Cuba, onde ficou exilado por quase dois anos. Voltou ao Brasil como militante Movimento de Libertação Popular (Molipo), dissidência da ALN. Foi preso entre 4 e 6 de novembro de 1971, conforme relatos de testemunhas. Morreu no dia 7, no DOI-Codi. Em vez de constar o nome verdadeiro, a certidão de óbito dele foi emitida em nome de Álvaro Lopes Peralta.
  • Frederico Eduardo Mayr (1948-1972): Nascido em Timbó, cidade vizinha de Blumenau (SC), morava no Rio desde criança. Aos 18 anos entrou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Em 1968 entrou na ALN. Uma das primeiras ações armadas de que participou, em 1969, rendeu a ele uma condenação de três anos em regime fechado. Foragido, partiu para Cuba, onde fez treinamento de guerrilha e viveu por quase dois anos. Voltou ao Brasil no fim de 1971, em outra organização, intitulada Molipo. Foi baleado em São Paulo, na Avenida Paulista, em 23 de fevereiro de 1972, e levado para o DOI-Codi, onde morreu aos 23 anos. Após longa sessão de tortura, recebeu três tiros no peito. Foi enterrado no cemitério de Perus como Eugênio Magalhães Sardinha. 

Entre as ossadas não identificadas, haviam algumas de crianças e adolescentes, além de outros indigentes, possivelmente executados — alguns com sinais de tortura — por “esquadrões da morte”, grupos paramilitares com atuação semelhante às atuais milícias. 

Apenas em 21 de julho de 1995, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso discutia a elaboração de uma lei que oficializaria a morte de 136 desaparecidos políticos, foi exibida no programa Globo Repórter a história completa da vala de Perus, contada por Caco Barcelos. 

Já no governo de Jair Bolsonaro, o trabalho de identificação das ossadas foi fortemente comprometido e quase inviabilizado por medidas depois revertidas na justiça. Damares Alves, então ministra dos Direitos Humanos, chegou a ameaçar a interrupção física dos trabalhos com a transferência das ossadas para Brasília.

Projeto quer suspender salário de militares da ditadura

A deputada federal Fernanda Melchionna (Psol-RS) protocolou em janeiro um projeto para suspender a remuneração de militares denunciados por violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade praticados na ditadura militar.  

Pela proposta, a suspensão será mantida até decisão definitiva do processo judicial. No intervalo da tramitação, o militar não terá direito a receber nenhum tipo de subsídio, adicional ou gratificação relacionados ao seu cargo ou função pública.

O projeto prevê que a interrupção do pagamento da remuneração e proventos pode ser cancelada, caso haja elementos que provem sua inocência. Em caso de absolvição definitiva, o militar terá direito ao pagamento retroativo dos valores suspensos.

Melchionna alega que a proposta tem como respaldo o Estatuto dos Militares, em que são descritos tanto os direitos como deveres dos membros das Forças Armadas. Ela cita o caso de Rubens Paiva, retratado no filme “Ainda Estou Aqui”.

Cassado após o golpe de 1964, o ex-deputado federal foi levado da casa dele, no Rio de Janeiro, por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), no feriado de 20 de janeiro de 1971 (dia de São Sebastião). 

Ele foi violentado no quartel da Força Aérea Brasileira (FAB). Depois, foi entregue a militares do Exército nos porões do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). 

Rubens Paiva foi torturado e assassinado na mesma noite ou nos dias seguintes, segundo o apurado pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014. 

Apenas mais de três décadas depois o governo brasileiro reconheceu sua morte, apesar de nunca terem encontrado o corpo. Eunice Paiva, a viúva, somente obteve o atestado de óbito em fevereiro de 1996. 

Após o lançamento e sucesso de bilheteria de Ainda estou aqui, soube-se que o governo federal paga R$ 140 mil por mês aos militares denunciados pelo assassinato de Rubens Paiva. 

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco militares reformados, em 2014: José Antônio Nogueira Belham, Jacy Ochsendorf e Souza, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos. 

Há 10 anos, a Justiça aceitou a denúncia e os militares tornaram-se réus. Dos cinco, três morreram (Sampaio, Jurandyr e Campos) desde o início do processo que está no Supremo Tribunal Federal (STF).

A proposta também incorpora o reconhecimento de violações documentadas por decisões da Comissão Nacional da Verdade, que investigou e reconheceu graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil, especialmente durante a ditadura. 

A partir de caso Rubens Paiva, STF julgará anistia a crimes permanentes

A partir dos casos de Rubens Paiva e de outros dois opositores à ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante o regime em vigor entre 1964 e 1985, com repercussão geral. A decisão, tomada semana ada, foi unânime entre os ministros, em análise no plenário virtual da Corte. 

São três os processos que motivam o debate no tribunal. Dois deles são recursos extraordinários com agravo (ARE) que tratam do desaparecimento forçado de Paiva e do jornalista Mário Alves, cujos corpos nunca foram encontrados. O outro é um ARE que diz respeito ao assassinato do militante Helber Goulart, da Ação Libertadora Nacional (ANL). 

Nos três casos, o MPF questiona decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que entenderam que os crimes estavam abrangidos pela Lei da Anistia e encerraram as ações penais contra os acusados.

O STF decidiu discutir se a Lei da Anistia abrange crimes permanentes que até hoje estejam sem solução, como os de ocultação de cadáver. Ao reconhecer a repercussão geral desses três novos casos, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a Corte amplia o debate para crimes com “grave violação de direitos humanos”, conforme proposta do MPF. 

Para o órgão, sequestro e cárcere privado também têm natureza permanente e não devem ser atingidos pela Lei da Anistia. A tese a ser fixada pelo STF no julgamento do mérito deverá ser seguida pelas demais instâncias do Judiciário.

A Lei da Anistia, de 1979, perdoou os crimes políticos e conexos cometidos apenas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Em 2010, o STF validou a norma com base na Constituição de 1988.