ARNALDO JABOR

Glauber Rocha - o santo guerreiro

Redação O Tempo


Publicado em 26 de agosto de 2014 | 03:00

Glauber Rocha morreu em 1981 exatamente no dia em que escrevo este artigo: 22 de agosto. A essa hora eu estava na casa de saúde ali na rua Bambina com amigos, junto a sua cama, como em volta de um barco que ia partir. Glauber estava entubado, agonizante, de olhos fechados.

De repente, ele se ergueu. Quase sentou, abriu os olhos e olhou em volta. Achamos que era um milagre. Barretão segurou sua mão e falou animado: “Glauber, estamos aqui, pode acordar!” Aí, ele deitou de novo e morreu.

O médico explicou que aquilo era uma espécie de falsa “visita da saúde”, uma complicação respiratória que provocava uma súbita aparência de ressurreição. E Glauber partiu assim, como quem toma “um trem em direção às estrelas,” como escreveu Artaud num texto genial sobre Van Gogh.

Muita gente fala: “Porra, vocês do Cinema Novo ficam só falando em Glauber, Glauber! Afinal de contas, qual é a importância desse cara? Vocês estão exagerando”. Não. A importância de Glauber não foi apenas no cinema, com quatro obras primas: “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em Transe” e o “Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, além do curta-metragem sobre o enterro de Di Cavalcanti, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes.

Parece mentira, mas Buñuel falou para mim, junto de Fritz Lang em Veneza, 1967, quando ou o “Belle de Jour”. Estávamos na mesa eu, Glauber e os dois gênios, tomando “aquavit”, sei lá o quê. Glauber se levantou para pedir uma “birra analcólica”, e Buñuel me disse: ‘Deus e o Diabo’ é belo e importante na história do cinema”. Fritz Lang concordou.

Aí, ele fez “Terra em Transe” e a esquerda odiou. Adiante, eu conto sobre esse filme.
Depois, quando fez o “Dragão da Maldade,” ganhou a Palma de Ouro de melhor direção, e o Visconti deu uma festa para ele em Positano. Glauber estava com tudo em cima e foi convidado para filmar nos EUA, mas inventou um jeito de escrachar os produtores norte-americanos, a quem ele jamais se submeteria.

Voltou para a Europa e fez dois filmes, “Cabeças Cortadas” e “O Leão de Sete Cabeças”. Aí, a crítica europeia que o idealizava caiu de pau em cima dele: “Ahh... o Glauber já era, seus últimos filmes não têm lógica etc...”

Nunca tinha visto Glauber sofrer tanto. Ele engoliu o choro, mas a partir daí foi piorando da cabeça.
Glauber foi perdendo contato com a realidade, ou melhor, intuiu que talvez não houvesse mais lugar para seus sonhos intergaláticos de filmar a verdade do mundo.

Seu narcisismo “do bem” não aguentou. Hoje, Glauber estaria louco de vez, loucura que já se manifestava na “A Idade da Terra”, que é um filme de um homem doente. Alguns classificam Glauber como um “maluco beleza”, dadas as ousadias e contradições que ele assumia em sua arte/vida, que para ele eram a mesma coisa. Eu dei uma entrevista para um documentário que tendia a tratá-lo como um curioso caso de “piração genial”, quando ele na realidade estava perdendo a saúde física e mental. Eu falei sobre isso, e o cara do documentário tirou minha fala porque ela atrapalhava o sentido que ele queria dar ao filme: Glauber, maluco beleza. Fiquei puto. Tudo bem. Mas eu falava sobre sua importância para além do cinema.

No filme “Terra em Transe”, que é uma obra ainda mais esclarecedora para os outros cineastas e para os intelectuais, ele realizou a primeira análise profunda e profética para o pensamento da esquerda oficial. Trata-se da cena em que (para quem viu o filme) uma escolinha de samba dança em volta de um demagogo populista (o genial Modesto de Souza) e o herói revolucionário do filme (Jardel Filho) agarra um sindicalista burro que falava sobre o Brasil, dizendo bobagens, tapa-lhe a boca e olhando para a plateia diz: “Este é o líder sindical Jerônimo; já imaginaram Jerônimo no poder?” Não deu outra. Estamos vendo o resultado.

Essa mesma cena, para além da crítica aos dogmas da “luta de classes e motores da história”, abriu um pensamento que deu no tropicalismo, no teatro de Zé Celso (“Rei da Vela” e “Roda Viva”) e para a obra-prima de Rogerio Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”, que é uma derivação apocalíptica e “godardiana” de ‘Terra em Transe” e que inaugurou nosso cinema contemporâneo.

Glauber e (justiça feita) Paulo Francis em seu artigo célebre “Tempos de Goulart” iniciaram a revisão das certezas da esquerda “soviética” e introduziram a dúvida em nossa reflexão política.
Glauber teorizou “Estética da Fome” mas nunca utilizou a miséria como lamentação oportunista. Ele viu a dinâmica do atraso do país, mostrou como a miséria e a loucura andam juntas, mostrou que apesar da sordidez política, havia e há uma estranha mutação promissora que se tece sozinha por baixo da terra brasileira. Nunca perdeu tempo com filmes que tinham o bem de um lado e o mal do outro, filmes para provar que a Justiça é injusta.

Glauber sempre pensou em alternativas para a estupidez tradicional de dividir a vida em burguesia e proletariado. Ele falava num general que considerava “progressista”, que era o Euler Bentes Monteiro, e também no Geisel, que falava em “abertura gradual”. Ele tinha esperança ingênua de que algum deles pudesse se “conscientizar” e melhorasse o país, porque o beco sem saída da luta armada e da incompetência ideológica não dariam em nada.

Aí, sempre nessa esperança, ele elogiou o super-ministro general Golbery que era intelectual e “poderia” entendê-lo.

Por causa disso, inclusive para se vingarem de “Terra em Transe,” ele ou a ser o alvo demonizado pelos imbecis e canalhas que viviam à custa do impossível, que se enobreciam na condição de “vítimas da ditadura”, que até hoje é um galardão, um estandarte para vagabundos.

Mas isso já ou. Os mais jovens não lembram nem sabem, mas Glauber foi um dos primeiros nomes de uma nova esquerda no país. Glauber nos ajudou a compor um pensamento moderno. Há uma charada no ar que ele nos deixou.