Alê Portela é advogada, mestre em Direito, deputada estadual e secretária de Estado de Desenvolvimento Social

Nos últimos dias, assistimos à explosão de um fenômeno nas redes sociais: vídeos de mulheres adultas cuidando de bonecas como se fossem bebês reais – os chamados “bebês reborn”. O tema ganhou tração, virou meme, indignou muita gente e, como era de se esperar, foi parar no Parlamento. Deputados e vereadores Brasil afora começaram a apresentar projetos de lei para “proibir” ou “regulamentar” o uso dessas bonecas, como se legislar sobre o comportamento afetivo individual de adultos fosse uma prioridade de interesse público.

Como parlamentar e secretária de Estado, sinto-me na obrigação de chamar a atenção para o real problema por trás desse debate: o analfabetismo emocional e o profundo desconhecimento da saúde mental que ainda reina, inclusive entre autoridades que deveriam proteger e promover esses direitos.

Substituição simbólica

psiquiatria contemporânea já reconhece que a carência afetiva prolongada, especialmente a ausência de vínculos significativos na infância e na vida adulta, pode resultar em padrões de comportamento compensatórios – alguns inofensivos, outros patológicos. A substituição simbólica da figura de um filho ou de um afeto ausente por um objeto, como uma boneca, pode ser sintoma de transtornos como depressão, luto não elaborado ou traumas afetivos severos.

Em vez de ser motivo de piada ou pauta legislativa, esse tipo de comportamento deveria ser porta para o cuidado, não para o deboche. Quem investe emocionalmente em uma boneca a ponto de tratá-la como gente está, provavelmente, gritando silenciosamente por ajuda. Tratar isso com escárnio ou com leis casuísticas apenas reforça o estigma, o preconceito e a desinformação sobre saúde mental.

País adoecido

O mais alarmante, no entanto, não é o uso das bonecas, mas a incapacidade coletiva de compreender o fenômeno como sintoma social – o retrato de um país adoecido emocionalmente. Um país onde mais de 50% da população ativa apresenta sinais de ansiedade, estresse ou depressão. Um país em que o cuidado com a saúde mental ainda é tabu, secundarizado ou, pior, tratado como extravagância.

Essa é exatamente a distorção que escancara o analfabetismo emocional que atravessa nossas instituições. O mesmo analfabetismo que reduz a saúde mental a memes e políticas públicas a likes.

Como gestora pública, tenho defendido a ampliação da rede psicossocial e a presença de profissionais da saúde mental nas escolas, nos CRAS, nos centros de convivência, nos abrigos e nos lares de acolhimento. É ali, no cotidiano da dor silenciosa, que podemos evitar que adultos procurem no plástico o colo que nunca receberam.

Vazio afetivo

Se queremos uma sociedade emocionalmente saudável, precisamos investir em vínculos reais, em educação emocional, em apoio psicológico ível e permanente. E, acima de tudo, precisamos de parlamentares que saibam distinguir o que é pauta pública do que é sintoma pessoal.

Bonecas reborn não são o problema. O vazio afetivo que elas revelam – e a nossa indiferença diante dele – é que deveria nos preocupar.