Leônidas de Oliveira é secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
A história oficial das Minas Gerais foi moldada à imagem do ouro: ela cintila, mas obscurece. Brilha nos altares folheados e nas fachadas das igrejas monumentais do centro-sul do Estado, mas apaga os traços mais antigos, profundos e fundadores que emergem da terra vermelha, dos rios e das serras do Norte. Minas nasceu antes do ouro. Minas nasceu no Norte.
Nas margens do rio São Francisco e do rio das Velhas, a ocupação humana antecede a Colônia, o ciclo do gado, o ciclo da fé e o ciclo do ouro. Povos indígenas milenares habitaram essas terras muito antes que se desenhassem fronteiras e mapas. Os pintores do Peruaçu – habitantes do Pleistoceno – deixaram nos paredões de pedra seus signos, danças, cosmos e sacralidade. São testemunhas da longa duração da presença humana em Minas. Como afirma Claude Lévi-Strauss, “o tempo mítico é mais real que o histórico”, e o que se grava nas rochas sobrevive à poeira dos impérios.
Peruaçu: Patrimônio da Unesco
Esse tempo mítico será agora reconhecido: o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no sertão entre Januária, Itacarambi e São João das Missões, está prestes a ser declarado Patrimônio Mundial Natural e Cultural da Humanidade pela Unesco. Ali, estalactites com mais de 28 metros convivem com mais de cem sítios arqueológicos, inscrições rupestres, cavernas colossais e as vozes silenciadas dos Xakriabá, ainda em luta por terra e permanência.
Mas o Norte de Minas não é apenas pré-histórico. Ele é também o berço da fé cristã no estado. Em 1664, ergue-se às margens do Velho Chico a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Matias Cardoso, a mais antiga de Minas ainda de pé. Em Brejo do Amparo, hoje distrito de Januária, nasce entre 1680 e 1700 a Igreja do Rosário, vinculada a comunidades negras e sertanejas. E em Barra do Guaicuí, no ponto em que o Velhas encontra o São Francisco, resiste, mesmo inacabada, a Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, construída em pedra bruta por volta de 1750.
Brasil profundo e o Espinhaço
Essas igrejas fundam um território de espiritualidade e arquitetura anterior ao barroco do ciclo do ouro. Não são ornamento, são origem. Não são apêndices de Sabará ou Vila Rica, são seu prenúncio. Ariano Suassuna dizia que “o Brasil profundo é o Brasil verdadeiro”. Também o é essa Minas profunda, nascida do barro, da fé sertaneja e dos rios navegáveis.
A Cordilheira do Espinhaço, outrora chamada Serra Geral, não separa: ela conduz. É espinha dorsal do território mineiro, artéria de ocupação e geografia simbólica. Como escreveu Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte, mas o real não está à vista”. O Norte mineiro é o invisível essencial da história. É o corpo escondido da palavra “Minas” que, como disse Carlos Drummond de Andrade, é “palavra abissal”. De seu abismo se extrai o ouro, mas também o alimento. É, ao mesmo tempo, brilho e sustento.
Darcy Ribeiro advertia que as elites brasileiras ignoram o Brasil real, o que não brilha. A revalorização das cidades históricas do Norte de Minas, como Matias Cardoso, Januária e Barra do Guaicuí, é um ato de reparação e lucidez. Elas não estão fora da história: são seu início.
Dois nascimentos de Minas
Ao lado do barroco dourado de Ouro Preto, emerge agora o barro milenar do Peruaçu. Ao lado das sinfonias do Aleijadinho, ressoam os cantos das tribos ancestrais e os traços nas pedras do sertão. Minas não nasceu da pressa. Minas nasceu da permanência.
Reconhecer o Norte é também reconhecer que Minas tem dois nascimentos: um no ouro, outro na rocha viva. Um na exuberância do barroco, outro na sobriedade do sertão. Ambos necessários. Ambos verdadeiros. Mas foi no Norte – entre rios, serras e pinturas – que Minas se fez abismo fértil, palavra ancestral, território primeiro.