O que já corre sem censura em grupos de WhatsApp agora talvez se torne mais comum em posts públicos no Facebook e no Instagram, as outras plataformas da gigante norte-americana Meta. O CEO da empresa, Mark Zuckerberg, anunciou que uma série de afirmações e associações antes restringidas nas redes estão liberadas, a favor do que ele chama de liberdade de expressão. Entre as mudanças, está a permissão para associar pessoas LGBTQIAPN+ a “doenças mentais”, referir-se a pessoas trans e não-binárias como “coisas” e a mulheres como “objetos domésticos ou uma propriedade” — antes, esse tipo de afirmação seria retirada do ar.
Ocorre que a associação entre transtornos mentais e pessoas LGBTQIAPN+ é um assunto superado pela ciência há anos. Por muito tempo, a homossexualidade e outras expressões de gênero e orientações sexuais não tradicionais foram, de fato, consideradas uma doença. Mas, desde 1990, a situação mudou oficialmente. Naquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). Foi também nessa época que se deixou de usar “homossexualismo”, pois “ismo” costuma se referir a doenças e transtornos.
O mesmo movimento ocorreu com a transexualidade em 2018, quando a questão da identidade de gênero também deixou de ser entendida como uma doença. Ela foi mantida no CID como uma questão de saúde sexual, a fim de garantir os cuidados de saúde a essa população. “Nenhuma das duas é considerada doença. Isso aí é uma coisa que a ciência já derrubou”, enfatiza a professora de comunicação social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades (GEL), Joana Ziller. A despeito das redes sociais, casos de preconceito ainda são crime e podem ser denunciados às autoridades no Brasil.
A Meta argumenta que “esses debates são considerados amplamente culturais e políticos”. Na perspectiva de Zuckerberg, as mudanças são uma questão de liberdade de expressão. No anúncio oficial das alterações, a sala de imprensa da Meta recuperou um discurso de 2019 proferido pelo CEO. “Algumas pessoas acreditam que dar voz a mais gente está impulsionando a divisão em vez de nos aproximar. Mais pessoas ao longo do espectro [ideológico] acreditam que obter os resultados políticos que elas acreditam ser relevantes é mais importante do que dar uma voz a todo mundo. Acho que isso é perigoso”, disse ele.
O problema, avalia a professora Joana Ziller, é que alguns discursos podem não ficar s à tela dos celulares. “Não existe uma separação entre nossa vida online e offline. Nossa vida é híbrida. A tela compõe nossa vida, o conteúdo que recebemos compõe a nossa vida. A partir do momento em que é possível dizer que as mulheres deveriam ser propriedade dos homens sem nenhuma limitação em uma das maiores redes sociais do mundo, há uma tendência de que essa afirmação seja cada vez mais repetida e, com isso, as pessoas possam se acostumar a ela”, diz.
Ela não hesita em exemplificar o quão grave isso se provou ao longo da história. “É o efeito da propaganda, algo que vimos muito fortemente no nazismo, por exemplo. Ele teve um componente de propaganda muito forte. Uma das primeiras coisas que Joseph Goebbels, responsável pela comunicação do Hitler, fez foi comparar os judeus a animais, a ratos, diminuir a humanidade deles, dizer que eram incapazes. A partir do momento em que a mentira ficou disseminada, foi mais fácil para o nazismo exterminar os judeus”.
Durante o anúncio das mudanças, Zuckerberg reconheceu que “menos coisas ruins” serão flagradas pelas plataformas, mas que, por outro lado, “menos posts e contas de pessoas inocentes serão acidentalmente derrubados”. O movimento da Meta ocorre em um momento de conflito ideológico no Vale do Silício, que reúne as maiores — e mais ricas — empresas de tecnologia do mundo. Nesse universo, a disputa entre esquerda e direita, conservadores e progressistas chegou às mãos de pessoas com dinheiro e poder o bastante para desequilibrar a balança política para um lado ou para o outro.
A movimentação nas redes alcança a política institucional. O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, levou Elon Musk, dono do X e homem mais rico do mundo, para seu governo. O político também elogiou a postura de Zuckerberg e chegou a atribuir a si mesmo influência sobre ela. Segundo ele, o CEO resolveu terceirizar a checagem de posts nos EUA, por exemplo, devido à pressão aplicada pelo republicano no ado.
Para a professora Joana Ziller, permitir que discursos sobre gênero e orientação sexual se inflamem nas plataformas é uma estratégia ideológica e política para maquiar problemas mais graves — como a desigualdade econômica e social que perduram em todo o globo. “Olhamos para o mundo, e o ódio é muito grande, a desigualdade é muito grande. Isso existe e não é culpa do gênero e da sexualidade, da raça ou dos imigrantes. Temos que pensar onde está a raiz desses problemas, e é bobo e ingênuo pensar que voltar ao ado nos costumes nos levará a uma vida melhor”, conclui.
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