Roger Deff é rapper da cena de Belo Horizonte

Quantas vozes compõem uma cidade? Mais ainda: quantas vozes percebemos na cidade? Quantas vozes de fato são ouvidas? As cidades são essencialmente diversas, polifônicas, formadas por múltiplas vozes, muitas vezes dissonantes. A resposta para a primeira pergunta não precisa ser um número exato, mas obviamente não se restringe a uma ou a poucas vozes. Quando falamos sobre o alcance, sobre quais vozes percebemos, o que muda são as variáveis geográficas, geracionais, sociais, de gênero e étnicas.

Nesse sentido, a “voz” de uma cidade precisa ser entendida como “muitas”, com suas respectivas visões de mundo, lugares de fala, reivindicações, inquietações e contradições. Não é possível (nem desejável) um consenso. Não se trata aqui de almejar um ponto de vista universal, sob pena de subalternizar e tornar invisíveis formas de perceber e registrar o mundo. É a partir desse conjunto que caminhamos.

Seguimos a partir da polissemia da qual é feita a cultura, dos encontros, das disputas de narrativas. Construímo-nos a partir da preservação da memória coletiva, ada de geração a geração por registros que vão da oralidade às imagens. Nossas memórias são nossos patrimônios, representados por mestras e mestres que trazem consigo sabedorias e tecnologias sociais ancestrais ou que se tornarão ancestrais em breve, sob perspectivas que desafiam visões colonialistas.

Narrativas oriundas de construções epistemológicas de matrizes africana, indígena, cigana… a partir da vivência empírica, do saber popular, das festas urbanas, das rodas de samba, das rodas de break, do artesanato, dos duelos de MCs, da poesia slam, do Carnaval. É preciso registrar que há intelectualidade na festa, dizer que festejar é ato de preservação da memória coletiva, que a música é essencialmente transmissão de conhecimento e que a cultura ressignifica espaços e contribui para a legitimação simbólica de territórios historicamente marginalizados, bem como dos sujeitos que os ocupam, igualmente negligenciados e marginalizados, para além de enfatizar que as pessoas portadoras dessas memórias são patrimônios vivos.

É importante gerar reflexão sobre o valor imprescindível da memória coletiva, compartilhada a partir das vivências de intelectuais tidos como periféricos e que trazem questionamentos centrais para os desafios dos novos tempos. Tempos nos quais se faz necessário, mais do que nunca, compreendermos que a nossa força enquanto comunidade reside justamente na nossa pluralidade, onde está a riqueza desse ecossistema chamado de Cultura, que nos conecta não só uns com os outros, individualmente, mas com outros Territórios, com o que foi construído antes e com o que vem adiante.

Tudo isso é estrutura e é estruturante, na medida em que é a base do que somos e do que almejamos ser enquanto coletividade. E a cidade segue como organismo feito de camadas sociais, crenças e visões de mundo que se encontram nos afetos, na desarmonia, nos desejos, nos conflitos e no que há de comum a ser compartilhado. A arte é e sempre será esse lugar de partilha, que nos convida para o deslocamento, educando o nosso olhar para a percepção do valor do conhecimento à nossa volta e, mais que a percepção individual, é sobre o valor coletivo, daquilo que vem sendo compartilhado e precisa ser visto para além de um lugar simplista.

O evento Voz – Culturas que Ecoam, realizado pelo Sistema Fecomércio-MG, acontece nos dias 6 e 7 de junho, no Sesc Palladium, e vem fomentar a discussão a respeito da importância da cultura propriamente dita, das manifestações culturais em suas várias possibilidades, da sabedoria proveniente da ancestralidade, do saber popular e do valor do espaço público, de maneira perceptível e amplificada, nos encontros dos bairros, dos morros, do asfalto, trazendo como principais emissores do discurso as vozes que muitas vezes não são percebidas, que nem sempre estão nos espaços de decisão e visibilidade.

Em tempos de visão orientada por algoritmos e noções exacerbadamente individualizadas, é preciso voltar nossos olhares para essa essência coletiva, pensar o nosso futuro enquanto sociedade diante dos desafios epistemológicos, sociais e climáticos que se colocam. Construir em conjunto e valorizar olhares sofisticados que já estavam entre nós.