Cena da novela “Vale Tudo” eleva pedidos por pensão alimentícia e acende debate
Sobrecarga das mulheres na sociedade, romantização do abandono masculino, medo e desinformação dificultam o a um direito básico, dizem especialistas
Nas últimas semanas, uma cena da novela “Vale Tudo”, protagonizada pela personagem Lucimar, papel da atriz Ingrid Gaigher, culminou em um aumento de quase 300% no aplicativo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro no momento em que a trama era exibida pela Rede Globo.
O que acontecia na tela, com a faxineira Lucimar sendo incentivada por uma amiga a buscar os direitos à pensão alimentícia do filho Jorginho, que não vinham sendo cumpridos pelo pai Vasco, vivido por Thiago Martins, acabou repercutindo na realidade e abrindo uma ampla discussão sobre o tema.
Em Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado afirma que tem priorizado a solução extrajudicial, obtendo “um grande volume de casos de pensão resolvidos de forma consensual, em sessões de conciliação feitas por defensores públicos”. O órgão divulgou dados referentes aos pedidos por pensão alimentícia dos últimos cinco anos, mas ressaltou que “os números de ações ajuizadas não espelham efetivamente o volume de demandas” justamente pela busca de soluções extrajudiciais.
Ainda em relação a um aplicativo virtual que facilitaria o o aos pedidos, o que já ocorre no Rio de Janeiro e em São Paulo, declarou que “a ferramenta está em desenvolvimento na área técnica da Defensoria Pública, ainda sem data definida para o lançamento”.
O que os números fornecidos pela Defensoria Pública de Minas Gerais revelam é um efetivo aumento por pedidos de pensão alimentícia que decorre desde 2020, quando foram registrados 8.296 pedidos. No ano seguinte, a marca atingida foi de 11.174 pedidos, e, em 2022, com o arrefecimento da pandemia de Covid-19, houve um salto para 22.467 pedidos. Os anos de 2023 e 2024 mantiveram essa média com 24.416 e 26.072 pedidos, respectivamente.
Até agora, em 2025, já foram registrados 7.456 pedidos por pensão alimentícia no Estado. O órgão, no entanto, ainda não compilou os dados referentes a maio, o que inviabiliza a conclusão sobre se a cena da novela “Vale Tudo” teria gerado um aumento de pedidos também em Minas Gerais, a exemplo do que ocorreu no Rio, em São Paulo e no Maranhão, entre outros Estados da federação.
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O serviço oferecido pela Defensoria Pública é gratuito, e pessoas interessadas podem recorrer a ele “em qualquer tempo, desde que preenchidos os critérios de renda para atendimento pela Instituição de até 3 salários-mínimos de renda individual ou até 4 salários-mínimos de renda familiar, e desde que o filho ou filha seja criança ou adolescente menor de 18 anos, ou, ainda que tenha 18 anos, ainda estude ou necessite de auxílio financeiro”, informa o órgão.
A advogada, mestre em Direitos Humanos e especialista em Direito das Famílias e Sucessões pela PUC-Minas, Elisa Bertilla, reforça que “não é porque a pensão não é paga há anos que o direito de recebê-la deixou de existir”. Na novela, Lucimar decide cobrar a pensão após oito anos.
“Há várias formas de buscar concretizar o direito do filho, da mãe e do pai, sendo a ação judicial apenas uma delas. As pessoas em situação de vulnerabilidade financeira podem buscar orientação e auxílio na Defensoria Pública, nos serviços de assistência judiciária que muitas universidades e faculdades possuem, em casas de apoio a mulheres, e, até mesmo, em escritórios privados que possuem programas de atendimento gratuito à sociedade”, destaca Elisa.
Ela afirma que o primeiro o é se organizar, a partir de questionamentos indispensáveis. “Quanto de pensão meu filho deveria estar recebendo? Quanto foi pago? Desde quando o pai não paga a pensão? Essas perguntas precisam ser feitas para entender em que pé está a situação”, pontua.
Medo e desinformação
Na opinião da advogada, existe “uma mistura de medo com falta de informação” que ainda impede muitas mulheres de buscarem seus direitos. “No tocante ao medo, é relevante pontuar que há um tabu sobre o tema, forte julgamento social, e, ainda, a resposta de muitos homens é agressiva. Comuns são os casos de violência decorrentes da mera menção sobre a possibilidade de ser ajuizado um processo. Essa violência nem sempre é física, se manifestando também como violência psicológica, emocional e patrimonial”, salienta ela, para quem “a ausência de informação, por sua vez, é uma falha nossa, enquanto sociedade e Estado”.
“Não apenas deixamos de instruir os cidadãos a respeito de noções básicas de direito, mas também dificultamos o o à justiça por meio de uma linguagem rebuscada e procedimentos incompatíveis com a realidade de grande parte da população. Foi construído um distanciamento tão grande entre sociedade e Judiciário que muitas mulheres sequer veem a ação judicial como uma possibilidade, ou, se a enxergam, acreditam que é algo muito difícil e trabalhoso”, critica Elisa.
A psicóloga e educadora parental Eulália Bortoni, especialista em neurociência afetiva e traumas do desenvolvimento acrescenta que, na maioria dos casos, essas mulheres também “estão lidando com uma dor emocional profunda”. “O abandono rompe vínculos de segurança, e o corpo e a mente entram num modo de sobrevivência. A neurociência afetiva explica bem que, quando a emoção está no auge, o cérebro não prioriza ações complexas como reivindicar direitos. Primeiro a mulher precisa se sentir segura e validada de verdade”, aponta Eulália.
Essa falta de proteção e validação estaria diretamente relacionada ao histórico sociocultural do país, que determinou “uma desigualdade sistêmica entre mães e pais”, complementa Elisa. “Para superá-la, precisamos compreender que há uma corresponsabilidade entre homens e mulheres na parentalidade, não podendo todo o peso recair sobre a mulher e os pais serem apenas ‘pais de final de semana’, isso se o pai for presente”, avalia a advogada.
Desigualdade histórica
Elisa percebe avanços, “como o reconhecimento de que o não pagamento de pensão pode ser um tipo de violência patrimonial, e, mais recentemente, a aprovação da lei que institui a Política Nacional de Cuidados e promove a corresponsabilização social entre homens e mulheres pela provisão de cuidados, consideradas as múltiplas desigualdades”.
Ela compreende o silêncio em torno da pensão alimentícia rompido pela cena de “Vale Tudo” como “sintoma de uma sociedade que determina que todas as atividades de cuidado, e isso inclui a criação dos filhos, cabem exclusivamente à mulher”. “Ainda hoje ouvimos a equivocada expressão de que o homem ‘ajuda’ na casa ou ‘ajuda’ com os filhos. É importante mudarmos a mentalidade, pois isso não é ajuda, é divisão de tarefas”, sustenta.
“Então, ainda que o vínculo de casal tenha desaparecido, continua existindo uma relação desequilibrada que é transferida para o exercício do papel de cuidado em relação aos filhos, que chamamos de parentalidade. Esse apagamento interessa a todos que se beneficiam com a manutenção da situação de subordinação da mulher em relação ao homem, em especial aos próprios homens que não querem uma regulamentação judicial da pensão alimentícia”, completa a advogada.
Eulália concorda que essa “estrutura patriarcal e machista que invisibiliza a sobrecarga das mulheres e romantiza o abandono masculino” atua como dificultador da garantia de direitos básicos, afetando emocional e psicologicamente as mulheres. “O julgamento e a vergonha ainda pegam pesado, porque a gente foi ‘ensinada’ a dar conta de tudo, e calada! Quando uma mulher se abre e fala que foi deixada sem apoio, financeiro ou emocional, ela sente o peso do ‘fracasso’ e isso apenas reforça seu silêncio”, constata.
O medo de reivindicar um direito também adviria de “um histórico de revitimização”. “Quantas já foram desacreditadas, chamadas de interesseiras ou vingativas? Para uma mulher que já está sofrendo por dentro, a ideia de entrar com um processo pode ser mais uma violência. Só com uma rede de apoio boa, com escuta de verdade e um acolhimento de coração é que a gente consegue quebrar essa barreira, e romper mais esse ciclo de violência”, aposta Eulália, acompanhada de perto por Elisa.
“A discussão a respeito da pensão alimentícia, além de mexer no bolso, escancara diversos problemas sociais, como a omissão paterna, a romantizada sobrecarga da mulher, o desequilíbrio da nossa sociedade no trato e remuneração de homens e mulheres e a necessidade de políticas que promovam uma reparação nessa situação”, arremata.
Impacto da teledramaturgia
A advogada Elisa Bertilla não tem dúvidas de que “a arte exerce uma importantíssima função social”, como comprova o impacto na realidade gerado pela cena da novela “Vale Tudo” que disparou os pedidos por pensão alimentícia pelo país. “Ao mesmo tempo que a ficção nos permite viajar para outros universos, ela tem o potencial de nos fazer refletir sobre a nossa própria realidade. A personagem da Lucimar retrata a mulher brasileira que trabalha, até em mais de um emprego, é mãe, dona de casa e está lutando para garantir um futuro melhor para o seu filho, apesar da resistência do pai em cumprir o combinado informal sobre pensão alimentícia”, reflete.
“Quantas telespectadoras não se viram na Lucimar? Desde a cena em que ela é instruída sobre o aplicativo da Defensoria Pública, chegaram a computar aproximadamente 270 mil os ao aplicativo em apenas uma hora, o que reforça o fundamental papel de inclusão social e educação trazido na ficção, que tem enorme potencial de mover a sociedade”, acredita Elisa.
Especialista em neurociência afetiva e traumas do desenvolvimento, Eulália Bortoni atribui essa comoção ao fato de a teledramaturgia ter “tocado fundo numa ferida coletiva”. “Não é só sobre dinheiro, é sobre dignidade, sobre o direito de criar filhos com o mínimo de justiça. A Lucimar representa muitas mulheres que seguem, em silêncio, sustentando o que é de dois, e ouvindo que estão exagerando. Quando essa dor vem à tona na tela, a gente se reconhece. E aí abre-se espaço para que a realidade comece a se transformar. A dor que era só minha vira coletiva. E onde há rede de apoio, há possibilidade de reorganização emocional, e, claro, de partir para a ação”, conclui.