Uma das letras da sigla LGBTQIAPN+ está ganhando protagonismo no noticiário durante a Olimpíada 2024. A boxeadora argelina Imane Khelif recebeu ataques de quem pensou que ela fosse uma mulher trans — ela não é, como esclareceu o Comitê Olímpico Internacional (COI). Já outras pessoas entraram no debate e disseram que ela é uma pessoa intersexo, o que a própria atleta não confirmou publicamente. Mas o que significa isso?

Intersexo é um termo que serve como um guarda-chuva para descrever quem nasce com características sexuais que não se encaixam perfeitamente nas definições clássicas de um corpo de homem ou mulher. Isso vale para vários aspectos, desde anatomia sexual, dos órgãos reprodutivos ou alterações hormonais e dos padrões dos cromossomos, lista uma cartilha do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR, na sigla em inglês). 

A médica assistente da endocrinologia da Santa Casa de BH e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Nathália Lisboa explica que, na medicina, normalmente utiliza-se o termo “diferenças de desenvolvimento do sexo” (DDS), em vez de intersexo. A origem delas pode estar desde a formação do embrião, e elas podem ser evidentes no nascimento ou só anos depois. “As diferenças podem ser diagnosticadas ao longo da vida. Pode ser quando a pessoa não apresenta a puberdade habitual. Ou na vida adulta, descobertas devido à infertilidade, por exemplo”, explica. São características que merecem acompanhamento médico, mas não necessariamente uma intervenção cirúrgica. Ela indica uma cartilha da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) para aprofundar o tema.

Na prática, como essas características se manifestam no corpo? De diferentes formas. Uma pessoa intersexo pode, por exemplo, ter um corpo identificado como classicamente o de uma mulher, com seios, vagina e útero, e ter um par de cromossomos XY (geralmente, pessoas designadas mulheres ao nascer têm cromossomos XX). Mas essa não é a única expressão que uma pessoa intersexo pode apresentar.

A Sociedade Norte-Americana Intersexo descreve: “uma pessoa pode nascer com a aparência de uma mulher externamente, mas com a maioria da anatomia interna tipicamente de um homem. Ou uma pessoa pode nascer com genitais que parecem uma mistura do usual de homens e mulheres — por exemplo, uma menina pode nascer com um clitóris notavelmente grande ou sem a abertura vaginal, ou um menino pode nascer com um pênis notavelmente pequeno ou com um escroto que se formou como lábios vaginais”. Durante muito tempo, utilizou-se o termo “hermafrodita” para apresentar essas pessoas, mas ele não descreve todas elas e não é mais comumente utilizado.

A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que entre 0,5 e 1,7% da população mundial seja intersexo — algo similar ao número de ruivos no mundo, que gira em torno de 1,5%. Com frequência, quando é possível identificar que o bebê é intersexo, a criança é submetida a procedimentos para “corrigir” essa característica. Hoje, contudo, essa prática é questionada por organizações de saúde internacionais.

O OHCHR descreve os traumas físicos e psicológicos que podem estar implicados nesses métodos: “crianças intersexo são frequentemente submetidas a cirurgias e outros procedimentos para tentar fazer com que sua aparência se conforme a estereótipos binários de sexo. Esses procedimentos, muitas vezes irreversíveis, podem causar infertilidade permanente, dor, incontinência, perda de sensibilidade sexual e sofrimento mental por toda a vida, inclusive depressão”.

Imane Khelif é intersexo?

A boxeadora Imane Khelif não se declara publicamente como uma pessoa intersexo. Essa ideia tomou um fôlego renovado quando a presidente da Gaynet (ONG italiana pelos direitos LGBTAQIAPN+) afirmou ter informações de que a atleta era uma pessoa intersexo. Em 2023, Khelif não ou no teste de gênero do Mundial de Boxe Feminino devido a níveis mais altos de testosterona do que o habitual.

Isso não quer dizer necessariamente que ela seja intersexo. A médica da Santa Casa BH Nathália Lisboa Gomes pondera que há outros casos em que pessoas designadas mulheres ao nascer têm níveis mais altos do hormônio. “Mulheres com a síndrome do ovário policístico podem ter, por exemplo. Isso não significa que tenham DDS”.

Intersexo é a mesma coisa de transexual?

Não. Pessoas transexuais são aquelas que não se identificam com o gênero com o qual foram designadas ao nascer. Uma pessoa intersexo pode ser trans se foi designada homem ao nascer e foi criada dessa forma, por exemplo, mas não se identifica assim. Mas ela também pode ser uma pessoa cisgênero, isto é, que se identifica com o gênero com o qual foi designada. Ou mesmo ser não-binária, ou seja, não se identificar de nenhuma dessas formas. Intersexo também não tem relação com homo ou heterossexualidade, que são orientações sexuais.

A inclusão das pessoas intersexo na sigla LGBTQIAPN+ é uma questão de luta por direitos políticos e visibilidade. “Há muito pouca representação de pessoas intersexo na mídia, e o assunto raramente é incluído na educação sexual, o que contribui para a marginalização dessas pessoas. Além disso, as cirurgias frequentemente realizadas em crianças intersexo criam um estigma de que há algo que precisa ser ‘corrigido’ ou escondido, o que é muito parecido com as tentativas de ‘corrigir’ ou ‘converter’ gays e pessoas trans para ser cis ou héteros. Consequentemente, as pessoas intersexo formam um grupo marginalizado e invisibilizado que merece um lugar na comunidade LGBTQIAPN+”, resume a Sociedade Intersexo da Universidade de Oxford, nos EUA.

Quer aprender mais? Entenda como surgiu a sigla LGBTQIAPN+ e o que cada letra quer dizer.