A Comissão da Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, julga nesta terça-feira (2) dois pedidos de perdão coletivo por atos cometidos contra povos indígenas durante a ditadura militar (1964-1985). 

É a primeira vez desde que foi criada, em 2002, que a Comissão da Anistia vai julgar um caso de reparação coletiva – em que o Estado brasileiro deve pedir desculpas e reconhecer os danos causados pela ditadura – a povos indígenas. 

A análise inédita ocorre na semana em que o golpe de 1964 completou 60 anos. Os dois casos envolvem povos expulsos de seus territórios: os povos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e os Krenak, em Minas Gerais. Os pedidos de reparação foram feitos pelo Ministério Público Federal (MPF) em ações que tramitam há anos.

A Comissão Nacional da Verdade, que foi criada na gestão de Dilma Rousseff e investigou os crimes da ditadura militar, estima que 8.350 indígenas foram mortos por ação do Estado ou por sua omissão nesse período.

Presos em “reformatório” sem acusação formal 2w4h66

Em 1969, a Polícia Militar de Minas Gerais e a Funai inauguram o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor, na Região do Rio Doce. Tal construção, que não tinha qualquer previsão legal que o fundamentasse, foi erguida em terra indígena, onde viviam os Krenak, para o confinamento de indígenas classificados como “perturbadores da ordem tribal”.

O “reformatório” chegou a abrigar 94 indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. Eles eram aprisionados por diversos motivos, tais como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena. Nada disso era considerado crime. Mas mesmo assim eram motivos para trabalhos forçados, tortura e maus tratos. 

Havia ainda uma espécie de solitária no “reformatório”, que os indígenas chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água escorrendo do encanamento. O tempo de permanência nesse ambiente e em todo o “reformatório” era definido pelo responsável pelo estabelecimento, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro.

Proibidos de falar a própria língua e6832

Segundo o MPF, “o fato de o presídio ter sido implantado em terras Krenak fez com que o controle militar sobre os membros da etnia que não estavam confinados fosse também muito incisivo”. Além de serem obrigados, inclusive crianças, a trabalhos forçados, policiais militares proibiram qualquer manifestação cultural, incluindo a comunicação em sua língua.

Com o fechamento do “reformatório”, os indígenas ali presos foram enviados à força para a Fazenda Guarani, em Carmésia, também na Região do Rio Doce. Todos os Krenak acabaram expulsos de suas terras e obrigados a viver a 343 km de distância, em uma espécie de campo de concentração.

Ao chegarem na Fazenda Guarani, os Krenak tiveram que conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais. E lá também havia local destinado ao confinamento dos indígenas “desviantes”.

Já as terras antes ocupadas pelos indígenas em Resplendor, onde eles plantavam e colhiam o que lhe era permitido pelos militares, foram distribuídas a posseiros escolhidos por autoridades da ditadura. Em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou nulas as transferências das terras habitadas pelo povo Krenak aos posseiros. Os indígenas recuperaram parte do território.

Os Krenak também foram vítimas do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, em novembro 2015. A lama de rejeitos de mineração poluiu quase todo o rio Doce.

Intervenções levaram a aumento de suicídios 29d1q

O outro caso a ser analisado nesta terça-feira pela Comissão da Anistia foi protocolado pelo MPF em 31 de agosto de 2015. Ele envolve povos Guarani-Kaiowá, da comunidade Guyraroká, em Caarapó, a 273km de Campo Grande (MS). 

Proccuradores relatam que, na época da ditadura militar e período e pós-guerra do Paraguai, as políticas de povoamento do país, levaram agentes estatais a promover a retirada compulsória dos indígenas de Guyraroká, “provocando genocídio da população e desintegração seus modos de vida tradicionais”.

Segundo o MPF, o propósito era retirar os indígenas das extensas áreas ocupadas por eles e confiná-los em espaços exíguos definidos de forma unilateral pelo poder público. A medida permitiu que as terras indígenas fossem liberadas à ocupação de terceiros, que tiveram a posse dos terrenos legitimados por títulos de propriedade.

Todas as violações praticadas pelo governo brasileiro aos indígenas de Mato Grosso do Sul foram reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade, que esteve em Dourados (MS) e ouviu integrantes da comunidade Guyraroká sobre o processo de confinamento territorial que sofreram.

Em 2004, após anos longe de seu território, indígenas voltaram a ocupar Guyraroká, iniciando pela ocupação da faixa de domínio da rodovia estadual MS-156, posteriormente ocuparam uma parcela do perímetro declarado – 65 de um total de 11 mil hectares.

Conforme o MPF, no pedido de anistia, consta que a principal atividade econômica desenvolvida pelos indígenas Kaiowá é a agricultura, ao serem retirados do seu território pelo governo brasileiro, eles ficaram impossibilitados de exercer todas as suas atividades econômicas, o que corrobora a reparação.

Além disso, a desintegração do grupo e a ausência de o ao território tradicional, somada à extrema miséria, provocaram um número significativo de mortes por suicídio na comunidade. Em um grupo de 82 pessoas, registrou-se um caso de suicídio por ano entre 2004 e 2010.

Casos foram negados por Damares Alves 5d2y2v

Criada em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Anistia analisa os requerimentos que tenham comprovação de perseguição política sofrida em diferentes períodos da história brasileira.

Mas, no governo de Jair Bolsonaro (PL), que sempre defendeu a ditadura e atacou qualquer benefício às vítimas do regime, os pedidos de anistia aram a ser negados em série. 

Foi o que aconteceu nos casos dos Guarani-Kaiowá e Krenak que chegaram ao Ministério dos Direitos Humanos na gestão da hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF).