Elza Soares, 89, quer recuperar o matriarcado de Pindorama, que Oswald de Andrade (1890-1954) celebrou em 1928, quando escreveu o Manifesto Antropófago: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. (...) A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama”.
Na visão dos povos tupis-guaranis, a chegada dos portugueses a seu território ficou conhecida como “a invasão de Pindorama”, que antes era “uma terra de palmeiras, livre dos males, regida pelo feminino, tribal, coletiva e ancestral”, de acordo com a poeta, compositora e doutora em antropofagia Beatriz Azevedo.
Até hoje, habitantes dos andes peruanos e dos pampas se referem ao Brasil como Pindorama, dona de uma “realidade sem complexos e sem penitenciárias”, enalteceu Oswald, que ainda disse: “Esta noite tenho o coração menstruado. (...) Só um poeta é capaz de ser mulher assim”.
Elza já havia afirmado com todas as letras em seu disco anterior que “Deus É Mulher”. Agora, pouco mais de um ano depois, ela coloca na praça “Planeta Fome”, onde clama por um país materno. “Não pode deixar a criança no chão quando ela precisa de colo, o Brasil sempre foi um país acolhedor, que as pessoas gostavam de visitar, hoje não está mais assim”, lamenta.
Ao regravar “Brasis”, de Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano, Elza brada: “Oh, Pindorama eu quero o seu porto seguro/ Suas palmeiras, suas feiras, seu café/ Suas riquezas, praias, cachoeiras/ Quero ver o seu povo de cabeça em pé”. Na sequência, o recado é para quem abandona o barco em tempos difíceis. “Me Dê Motivo”, obra de Michael Sullivan e Paulo Massadas, que se tornou clássica com Tim Maia, é introduzida em “Blá Blá Blá” para dizer “me dê motivo/ pra ir embora”.
A faixa traz a participação de BNegão, que não poupa críticas a nenhum aspecto do atual governo: “A partir de agora a Terra é plana/ O novo patriota cede as terras pra América do Norte/ Se a reforma não ar, o Brasil vai quebrar”, ironiza o rapper. “BNegão é um amigo antigo, existe um respeito grande entre a gente”, elogia Elza.
As participações, aliás, dão o tom em vários momentos do disco. “Libertação” conta com o grupo BaianaSystem, a cantora Virgínia Rodrigues e Letieres Leite, maestro da Orkestra Rumpilezz. “Não Tá Mais de Graça” apresenta Rafael Mike, também autor da música. Integrante do Dream Team do inho, Mike foi responsável pela batida de funk presente em “As Caravanas”, canção que deu nome ao último disco de Chico Buarque.
“O Mike é o futuro, ouviu?”, informa Elza. Curiosamente, a ligação entre os dois remete ao ado. Há pouco tempo, o compositor de 39 anos descobriu que o seu pai biológico era José Baptista Ribeiro, baterista de Elza na década de 60. Desde então, a cantora ou a chamá-lo de “Batistinha”.
“Eles têm o mesmo sorriso”, garante Elza. Em “Não Tá Mais de Graça”, Mike retoma a história da anfitriã, e rebobina os versos emblemáticos de “A Carne” (2002) a fim de atualizar o sentido daquele protesto. “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ O que não valia nada agora vale uma tonelada”, dispara, no refrão.
A mesma composição menciona Wakanda, lar do super-herói Pantera Negra, e a vereadora Marielle Franco, cujo assassinato completa neste sábado (14) um mês e meio sem solução. “Estou gritando contra o racismo há muito tempo, demos uma acordada, mas ainda não é suficiente”, reclama Elza.
Liberdade. Ao longo do repertório de “Planeta Fome”, Elza Soares reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “ei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está ando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma.
Na faixa “Não Recomendado”, a cantora dispara contra a perseguição à comunidade LGBT. Os recentes episódios de censura na Bienal do Livro do Rio, com o recolhimento de exemplares a pedido do prefeito Marcelo Crivella, e o cancelamento de produções cinematográficas por parte da Ancine, a mando do presidente Jair Bolsonaro, têm incomodado a artista. “É um absurdo tão grande que eu não sei nem o que falar. Homofobia é crime, já conquistamos essa vitória. Deixem a liberdade do povo em paz”, desabafa.
Em meio ao turbilhão, há momentos de respiro, com o lirismo de “Tradição” e o romantismo de “Lírio Rosa”. “É para a hora da calma, são músicas lindas. Nós não podemos perder o amor”, declara. Foi justamente o amor ao próximo que inspirou a cantora a resgatar o seu lado compositora, revelado em “Louvei Maria” (1974), “Língua de Pilão” (1977) e “Somos Todos Iguais” (1985), entre outras. A inédita “Menino” estava guardada na gaveta.
“Tenho uma história de vida forte e de vez em quando tiro um pedacinho dela para compor”, observa Elza, que morava na favela de Moça Bonita, no Rio, quando viu meninos brigando na rua e se inspirou. Já o amor eterno por Garrincha é citado em “País do Sonho”. “Ele vibrava quando fazia um gol”, recorda. E foi nas lembranças que Elza buscou o título do álbum. Ao se apresentar pela primeira vez no programa “Calouros em Desfile”, em 1953, o apresentador Ary Barroso a questionou: “De que planeta você veio?”. A resposta veio de imediato: “Planeta Fome”. “O país está faminto de saúde, respeito e amor”, finaliza Elza.
Disco. “Planeta Fome”, o novo disco de Elza Soares, tem capa ilustrada pela cartunista Laerte. Ao longo de 12 faixas, a cantora dá voz a “Virei o Jogo”, de Pedro Luís, “Libertação”, de Russo apusso, “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, “Não Recomendado”, de Caio Prado, e outras.
Ouça faixa do novo disco de Elza Soares: