Em cima de uma mesa ao redor da qual se espalhavam entusiasmados o pai e os tios ao som do brega e do samba que ecoava de suas gargantas, a criança pequenininha, com seus três ou quatro anos, se requebrava toda enquanto pedia “deixa eu cantar, deixa eu cantar!”, aflita para participar do coro e da festa. Todos aplaudiam e um deles cochichava no ouvido da mãe: “Essa menina vai ser artista!”. 

A profecia se cumpriu e hoje Gaby Amarantos, que participa neste final de semana do Voz – evento que, além dela, reúne nomes como Xamã, Kdu dos Anjos, Roger Deff e o Bloco Swing Safado –, se recorda com alegria dessas primeiras lembranças, quando já dava voz ao carimbó que a tornou conhecida em todo o Brasil a partir de “Treme”, álbum de 2012 que emplacou o hit “Ex Mai Love” na abertura da novela “Cheias de Charme”, da TV Globo.

“A mulher da Amazônia é a minha maior referência, a mulher livre, que bota uma cuia no seio, que é filha da terra, da encantaria, menina do rio, mulher do Pará, essa mulher que é maravilhosa, dos cabelos ao vento, mulher ribeirinha que toma banho de igarapé, que luta pela floresta, por seus direitos, pela beleza que encanta o Brasil e o mundo”, enaltece a paraense, que, seguindo a proposta do Voz, cuja atual edição destaca os patrimônios vivos da cultura brasileira, pretende abordar “as vozes que movem territórios culturais e corações” no bate-papo com Kdu dos Anjos que acontece nesta sexta (6).

“Queremos mostrar para as pessoas que ainda têm uma voz pequena que a voz delas também pode se ampliar, ecoar e reverberar outras vozes”, opina Gaby, que valoriza “esse momento político e cultural de resgate da cultura que estamos vivendo”. O rapper Xamã, que, no sábado (7), debate com o mineiro Roger Deff as múltiplas possibilidades do Hip Hop e seu papel para a juventude da periferia, concorda que “a arte é uma ferramenta de transformação”.

Periferia

“Num momento em que o Brasil e o mundo estão ando por tantas mudanças sociais e políticas, a cultura precisa continuar sendo esse espaço de escuta, de troca, de resistência. A arte fala onde muita gente é silenciada, e festivais como esse ajudam a manter esse canal aberto”, defende Xamã, para quem “o rap nasceu como grito da periferia e continua sendo um espelho das dores, das vitórias e das potências que vêm desses territórios”. 

Escalado para “Três Graças”, próxima novela das 9 da Globo, escrita por Aguinaldo Silva, ele acaba de colocar na praça “Fragmentado”, seu mais novo disco, com nada menos do que 25 faixas. “Esse trabalho é a soma de tudo que eu fui, que eu sou, e que ainda estou me tornando. São músicas que guardei por anos, ideias que vinham de épocas diferentes, mas que se conectam por sentimentos comuns. É um álbum que fala da minha jornada, mas também da jornada de muita gente que se sente dividida entre várias versões de si”, explica Xamã, que recebe convidados de peso como Milton Nascimento, Adriana Calcanhotto, Criolo e Black Alien, junto a nomes da nova geração como Liniker, BK, Duquesa, Victor Xamã, Major RD, Flora Matos e Agnes Nunes. 

A atriz e cantora Sophie Charlotte, namorada do anfitrião, é outra participação de luxo, construindo um mosaico em que o rap se abre para o rock e a MPB. “Minha música vem dessa mistura entre a rua, a poesia, a paixão e o protesto”, sintetiza Xamã, que começou “ouvindo Raça Negra no radinho de pilha de casa”, até se encantar pelos Racionais MC’s, Gabriel O Pensador e Planet Hemp. “Minha mãe gostava de samba, e eu fui criando esse gosto musical variado. Mais tarde, mergulhei nos poetas da MPB e do rock como Gil, Caetano, Belchior e Legião Urbana”, enumera. 

Origem

Gaby Amarantos também tem novidades. Ela atingiu um milhão de visualizações com o clipe “Mulher da Amazônia”, tecnobrega lançado em fevereiro num dueto com a cantora Zaynara. “Eu já tinha o desejo de escrever essa música há muito tempo, sobre a beleza da mulher do Norte, para a gente ter o nosso hino”, explica Gaby. Ela descreve como “muito bonito e natural” o processo de criação do clipe, que teve tomadas na Ilha do Mosqueiro, “uma praia de rio em Belém que fica a meia hora da cidade”. 

“É um lugar paradisíaco, bucólico. A gente tinha um roteiro na cabeça, mas, na hora, vão acontecendo outras coisas. Tem uma cena na feira que fomos reunindo as mulheres, porque elas quiseram participar”, detalha a artista, que festeja o fato de a canção ter vindo à luz no ano de uma série de acontecimentos emblemáticos em seu Estado, como a COP-30 e os festivais Global Citizen e “Amazônia Para Sempre”, levando para o Pará celebridades como Mariah Carey, Chris Martin e Leonardo DiCaprio.

“As pessoas vêm para cá debater sobre meio ambiente e a cultura, através da música, é uma excelente ferramenta de preservação”, afiança Gaby, que com décadas de estrada na música brasileira, um Grammy Latino de melhor álbum de música de raízes em língua portuguesa por “Tecnoshow”, de 2023, e tendo fundado sua própria empresa, além de 35 quilos mais magra, mantém sua “essência paraense”.

O carioca Xamã, por outro lado, batizado Geizon Carlos, foi aprofundando com o tempo essa relação com suas raízes indígenas “que sempre existiu”. “Cresci sabendo da minha origem por parte de pai, mas só nos últimos anos eu realmente comecei a me reconectar, a entender mais da cultura, da força e da espiritualidade do meu povo”, sublinha.

O codinome artístico veio das batalhas de rima das quais participava, em que encarnava um personagem do jogo “Mortal Kombat” que era, justamente, um xamã, entidade espiritual muito identificada com as culturas de povos originários. Essa feliz coincidência “virou também uma forma de honrar e reconectar” Xamã às suas origens. “Esse nome acabou ganhando um peso diferente para mim”, arremata o ator e rapper. 

Serviço

O quê. Voz 2025, com Gaby Amarantos, Xamã, Roger Deff, entre outros

Quando. Nesta sexta (6) e sábado (7), com programação completa pelo portal www.mais.sesc.mg.com.br/voz 

Onde. Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046)

Quanto. Contribuição solidária de R$10 em benefício do Programa Sesc Mesa Brasil pelo www.sympla.com.br