Até a luz de uma simples vela, mesmo a dois quilômetros, pode ser vista pelo inimigo. Portanto, em caso de ataque aéreo, é preciso ficar no escuro. Mesmo no meio do caos, mantenha a calma. Não corra, tente buscar refúgio num abrigo próximo.

Instruções assim circulavam pelo Rio de Janeiro nos anos 1940, depois que o Brasil decidiu entrar na Segunda Guerra Mundial, contra Alemanha, Itália e Japão. O conflito se desenrolava a milhares de quilômetros da então capital do país, mas seus efeitos locais eram claros na política, na cultura e na vida.

E é este o tema de "Trincheira Tropical: A Segunda Guerra Mundial no Rio", novo livro do jornalista e escritor Ruy Castro. Ele vai falar do lançamento na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, como autor homenageado no evento neste mês. Ao mesmo tempo, ele lança a plaquete "É o Meu Maior Prazer", sobre o Flamengo, coedição da Janela Livraria e da Mapa Lab.

Conhecido por suas biografias de fôlego, o autor volta em "Trincheira Tropical" a um tipo de obra recorrente em sua produção - em vez do retrato de um personagem, o retrato de toda uma época.

É o mesmo que ele já tinha feito, antes, em "Chega de Saudade" e em livros como "Metrópole à Beira-Mar", sobre o Rio de Janeiro dos anos 1920.

O resultado é uma narrativa densa, contando os rumos não só de uma sociedade, mas de dezenas de personagens. "Em uma biografia, o cenário é coadjuvante. Nesses livros, o cenário está em primeiro plano, e os personagens vão entrando e saindo. A costura da narrativa é mais difícil", diz o autor.

É uma história que vai de 1935 a 1945, ou seja, começa antes de Getúlio Vargas - depois de muitos vacilos e sinais ambíguos a ambos os lados do conflito - declarar guerra ao Eixo. A narrativa se desenha a partir dos conflitos ideológicos no seio da sociedade brasileira, com comunistas, liderados por Luiz Carlos Prestes; integralistas, sob a batuta de Plínio Salgado; e os alinhados à democracia liberal, com nomes como o chanceler Oswaldo Aranha.

Era o mesmo conflito que se desenrolava além-mar. O leitor vai acompanhar a extensão da influência do integralismo e dos simpatizantes do Eixo no país, inclusive no governo Vargas, tornado ditador a partir do ano de 1937.

A lista dos que batiam continência a Plínio Salgado é danosa para algumas reputações. O crítico literário católico Alceu Amoroso Lima, por exemplo, fez parte do movimento. Na relação, constam também nomes como Miguel Reale, dom Helder Câmara e mesmo intelectuais negros como Abdias Nascimento.

"Para o escritor, é o seguinte: você a por uma porta e o ado está à sua espera, terrível. Ele acontece de novo diante dos seus olhos. E é chocante ver que pessoas por quem você tinha consideração fizeram coisas que não eram tão iráveis", diz o jornalista. "Não tenho obrigação de dizer se fulano mudou de ideia depois, o livro vai de 1935 a 1945."

O Rio de Janeiro dessa história é um serpentário onde vicejam espiões, quintas-colunas e simpatizantes da Alemanha nazista -que tentam arrastar o país para o Eixo e, ao fracassar, vazam informações para Berlim. Embora o que se a no Palácio do Catete seja relevante, a obra sai às ruas para contar uma história cultural e da vida privada.

É assim que o autor mostra como, em meio ao sentimento anti-Alemanha, os cariocas renunciaram a vários elementos relacionados ao país inimigo. Não puderam, contudo, abrir mão do chopinho; só trocaram o caneco pela tulipa.

Há ainda a revolta popular quando, em meio ao racionamento de produtos essenciais, descobriram que a égua Farpa, do Jockey Club, tomava um balde de quatro litros de leite com dois quilos de açúcar - um luxo que nem crianças e doentes tinham.

Com o alinhamento aos Estados Unidos, produtos americanos começaram a surgir. Habituados ao guaraná, os cariocas demoraram a beber Coca-Cola; diziam que tinha o gosto do sabão Aristolino. Mas chegava aí a cultura americana, numa cidade antes dominada pelo francês.

E que tal o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra do Estado Novo e simpatizante do Eixo? Com a dentadura sambando na boca, trocava o "Z" pelo "J" e o "S" pelo "X". Depois de convertido à causa dos Aliados, fez um discurso dizendo "na 'defeja' do 'noxo grandiojo' patrimônio moral e material, 'imperexível' legado de 'noxos antepaxados'; 'nexe' momento em que periclitam os próprios fundamentos da pátria, juntam-se os 'xentimentos' de revolta fremente, justa e 'inxopitável'..."

Ruy Castro ainda relembra imigrantes que chegaram ao Rio fugindo da guerra, como Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux, mas também o treinador Dori Kürschner, que revolucionou o futebol no país.

O clímax é a campanha dos pracinhas brasileiros lutando na Europa - jovens que pelejaram para libertar territórios enquanto, em casa, o Brasil vivia sob a ditadura de Getúlio Vargas. O embarque da Força Expedicionária Brasileira demorou. Na cidade, o povo dizia "é mais fácil uma cobra fumar do que a FEB embarcar". E a cobra fumando se tornou o símbolo da força.

A obra ainda descreve os percalços da linha de frente, até chegar à histórica tomada de Monte Castello, na Itália, pelos pracinhas. E, então, sua volta ao Brasil - onde os aguardavam uma festa e também uma punhalada de Getúlio Vargas.

"Tudo o que eles fizeram lá foi de muita coragem. Lutando contra o despreparo, contra o desconhecimento. Mas o destino deles estava sendo decidido por Dutra e Getúlio nos gabinetes, da forma mais calhorda possível. Os pracinhas ficaram desamparados", diz o autor.

O fim dos pracinhas também leva o livro a terminar numa nota pessimista. "Quase tudo daquela época desapareceu. Mas certas ideias que se julgavam extintas soam familiares em nosso tempo."

"Trincheira Tropical: A Segunda Guerra Mundial no Rio"
Preço. R$ 109,90 (448 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autoria. Ruy Castro
Editora. Companhia das Letras