“Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ Ensinai-me, ó, Pai, o que eu ainda não sei”, canta Gilberto Gil no refrão da faixa que, gravada originalmente no álbum “Raça Humana”, de 1984, não por acaso foi escolhida para nomear a última turnê do baiano, que, aos 82 anos, dos quais mais de 60 dedicados à música, pretende se afastar dos grandes shows para se concentrar nos prazeres mais comezinhos.
Apesar da tônica de despedida, porém, a tour “Tempo Rei” não representa uma aposentadoria musical de Gil, que chega a Belo Horizonte, com apresentação única no Mineirão, amanhã. Antes, ele ou por Salvador, que recebeu o espetáculo inaugural da série, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, levando multidões para estádios e surpreendendo o público com improvisos e convidados especiais – entre eles, Caetano Veloso, Djavan, Chico Buarque, Lulu Santos, Marisa Monte, Anitta e Sandy.
“Essa turnê é caracterizada pelos grandes públicos em estádios, né? São 40 mil ou até 50 mil pessoas, enfim, em lugares muito grandes. Esse tipo de trabalho, na verdade, é a primeira vez que eu faço. É a primeira vez que faço uma excursão extensiva e intensiva desse tipo. E espero que seja a última também”, detalha o músico em entrevista a O TEMPO, por telefone. “Não quero, por várias razões, continuar escalando, fazendo um incremento cada vez maior desse tipo de atividade. Ao contrário”, prossegue.
Ocorre que, como na música-oração “Tempo Rei”, Gil parece mais interessado, agora, em transformar as velhas formas do viver: “Eu quero voltar a ter tempo para ficar mais em casa, para tocar mais meu violão simplesmente, cantar minhas coisas, ler meus livros, ver minha televisão, ler meu jornal, receber os netos e compartilhar com alguns amigos mais próximos, de vez em quando, um almoço no domingo. Quero agora uma vida assim, mas, ao mesmo tempo, eventualmente mantendo encontros com o público em situações mais modestas, mais simples, em palcos de pequenos teatros e coisas assim. Isso tudo eu tenho vontade de continuar fazendo na medida em que tenha gosto, impulso, energia e saúde para fazer”.
Ao mesmo tempo, sem elaborar grandes projetos e sem ter maiores pretensões, ele segue aberto a novos horizontes, aprendizados, aventuras. “Eu não tenho algum recanto do território da vida musical que eu tenha vontade de explorar com mais cuidado. Não tenho, não. Estou mais interessado nessas coisas mais soltas, mais esporádicas”, ite, para, em seguida, falar da força do acaso e suas gratas surpresas.
Gil lembra, por exemplo, ter trabalhado, nos dois últimos anos, na composição de duas óperas: a primeira, Amor Azul, é baseada no poema “Gita Govinda”, do poeta indiano Jayadeva Goswami; e, a última, inspirada no poema considerado a obra-prima de Gonçalves Dias, “I-Juca-Pirama”, tem estreia mundial marcada para novembro deste ano, no Theatro da Paz, em Belém, durante a COP30 – para o projeto, o músico foi convidado por Paulo Coelho e trabalhou ao lado do italiano Aldo Brizzi.
Em outra frente, foi responsável, com o filho José Gil, pela música do filme “Deus Ainda É Brasileiro”, último trabalho do Cacá Diegues, com previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano. Um dos expoentes do cinema novo, o diretor faleceu neste ano, quando ainda trabalhava na finalização desta que é sua 20ª obra e marca a continuação do sucesso “Deus É Brasileiro”, de 2003.
“Essas coisas todas, eu continuo tendo vontade de fazer. Mas vai depender também de tudo, né? Da saúde, da energia, do impulso, do bem-estar, enfim, tudo isso”, resume Gil, que, portanto, não dispensa novos trabalhos, muitos dos quais desenvolve ao lado da família.
“Os meninos e as meninas cresceram num ambiente saturado de música. A Nara, que é a minha filha mais velha e que está no palco comigo, na turnê ‘Tempo Rei’, vai fazer 60 anos. E tem os outros filhos: a Preta, que se tornou uma artista própria, com carreira própria; o Ben; o José, que agora, além de ser músico, toca comigo e criou Os Gilsons com os dois sobrinhos dele (Francisco, filho de Preta, e João, filho de Nara)… Todos seguiram esse caminho, com muita competência, muito gosto”, orgulha-se o pai e avô. “A música sempre foi uma das ferramentas importantes na educação deles, na abertura dos espaços, para o mundo, para a vida, para eles fazerem as leituras sobre a existência e tudo mais. A música sempre foi um uma coisa importante na criação da família”, complementa.
Moldura barroca
Foi ao lado dos filhos, filhas, noras, netos e netas que Gil esteve pela última vez em BH, quando, em 2022, realizou o show da noite de abertura do festival Sensacional!, no Parque Ecológico da Pampulha. E a forma como ele e sua família foram recebidos pela plateia segue nítida em suas memórias. À época, Preta, que hoje vive nos Estados Unidos, para tratamento de um câncer, participou do show, quando foi efusivamente aplaudida. Ela já vinha de uma série de procedimentos visando a remissão do tumor.
“Olha, com Minas sempre tive uma relação forte, sempre fui próximo da música mineira. Na minha geração, a gente teve o Clube da Esquina e todos os seus componentes, com a força da liderança do Milton Nascimento. Depois, toda essa geração ligada a uma nova progressão, com o Skank, o Samuel Rosa. Tudo isso sempre me interessou, e continua me interessando”, situa o artista, sempre com falar manso, pausado.
“E tem o público mineiro, com o qual eu tenho uma longa relação de encontros. É um público que canta muito bem. É, talvez, o público que melhor canta coletivamente no Brasil. Quando a gente faz os shows, os coros que soam mais bonitos são os coros de Minas. Eu gosto muito do modo como mineiro canta as canções queridas, as canções populares, importantes para eles. E muitas dessas canções são do meu próprio repertório”, elogia, ressaltando que esse canto em coro, tão comum nas suas apresentações na cidade, emprestam quase uma moldura barroca aos shows.
É também com carinho que Gil ouve relatos de artistas, de Minas e dos quatro cantos do Brasil, que têm no trabalho dele uma referência incontornável. “É (resultado) da longevidade do trabalho, né? São tantos anos já de militância nesse campo da música popular com todas as implicações, os movimentos musicais… O Tropicalismo, que foi um momento especial com Caetano, Gal, Rita Lee, com todo aquele pessoal. Tudo isso foi ficando, e essas coisas todas foram se tornando uma nova referência para o público”, pontua, creditando a esse fenômeno a diversidade dos públicos que encontra a cada nova apresentação. “Você tem hoje, nas minhas plateias, nesses shows, por exemplo, que estou fazendo agora, um espelho disso. Vem o pai, vem a mãe, vem o filho, vem o neto e a neta. São várias gerações que estão envolvidas nesse processo, nessa corrente longa de 60 anos de trabalho”, assinala.
“(Esse reconhecimento) é a recompensa por tudo – um pouco pela transpiração, um pouco pela inspiração. É também uma coisa afetiva que o país tem com seus artistas, com seus cantores, né? Com aqueles que cantam sua história, que cantam o seu dia-a-dia no Nordeste, em Minas, no Rio Grande do Sul, em todos os lugares. E eu sou parte disso, sou uma peça nesse grande mosaico brasileiro de música”, arremata.
Expectativa é ‘fazer música’
Sobre o show no Mineirão, Gilberto Gil faz votos modestos: “Espero que eu esteja bem-disposto e que os nossos queridos músicos – somos 17 ao todo, no palco – também estejam, para que façamos música para toda essa gente”, diz, lembrando que o repertório rea desde “Procissão”, faixa de seu álbum de estreia, “Louvação”, de 1967, e “Domingo no Parque”, música do disco “Gilberto Gil”, de 1968, considerada uma das canções fundamentais da elaboração estética do Tropicalismo, além de percorrer outros tantos momentos de sua carreira até chegar a fases mais atuais.
Segundo a plataforma Setlist.fm, que monitora repertórios de turnês ao redor do mundo, outras canções presentes na turnê são “A novidade”, “Andar com Fé”, “Back in Bahia”, “Refazenda”, “Não Chore Mais (No Woman, No Cry)”, “Se Eu Quiser Falar com Deus”, “Esperando na Janela”, “Cálice” e, claro, “Tempo Rei”. “Quer dizer, tudo que vem do baião, do samba, do rock and roll, do reggae está no show. E o encontro, eu quero que seja o mais alegre e esfuziante possível, principalmente com essa coisa de Minas que canta, que gosta de cantar”, finaliza.
Já sobre a identidade do convidado mineiro para o show em Belo Horizonte – um dos nomes cotados é o de Samuel Rosa, que regravou, com Gil, o single “Vamos fugir” –, o baiano prefere fazer suspense. “Essa é uma coisa que a gente fez (as participações especiais) que deu muito certo. O (Rafael) Dragaud, que é o diretor, a Flora, que é produtora, o Ben, que é diretor musical, foram convidando vários colegas para que viessem participar comigo dos shows, que eu recebo sempre como uma surpresa. Na verdade, eu mesmo só fico sabendo quem vai ser a dois ou três dias do show. E vai ser assim em Belo Horizonte também”, sinaliza.
SERVIÇO:
O quê. Gilberto Gil no show ‘Tempo Rei - Última turnê’
Quando. Neste sábado (14), às 20h
Onde. Mineirão (avenida Antônio Abrahão Caran, 1.001, Pampulha)
Quanto. A partir de R$ 65 (meia, Cadeira Superior Laranja) até R$ 1.500 (camarote). Ingressos disponíveis no site eventim.com.br. Diversos setores esgotados.