O espanto não foi gratuito quando a bebê, que só engatinhava, ficou de pé. No rádio, tocava “Apesar de Você”, de Chico Buarque. O medo se apoderou diante do inusitado. A pergunta era pertinente: o desejo de ser enterrada na Lapinha havia sido cumprido? As lembranças de quatro artistas independentes de BH se misturam como num mosaico, na ânsia de buscar onde tudo começou e como eles vieram parar aqui, nesse cenário de “muito trabalho e pouco reconhecimento”, frase que aparece nas respostas de todos. Quem conta a história é o pai de Camila Felix, 30, mas ela sabe que deu “os primeiros os em cima do palco”, o que não é força de expressão. “Simplesmente levantei e andei”, recorda. O cenário era uma colônia de férias no interior de São Paulo.
“A arte está em minhas primeiras memórias, vivi em cima do palco”, salienta Camila. Atriz e bailarina, ela começou a ter aulas de dança aos 4 anos, e, logo em seguida, ingressou em um grupo de teatro. A decisão de qual faculdade cursar gerou dúvidas, mas o apoio da família para “seguir o coração” foi fundamental. Na fila da prova para o vestibular de Teatro da UFMG, ela escutou que “ia morrer de fome”. “Aquilo ferveu meu sangue, o balde de água fria que me jogaram saiu pela culatra. Pensei: ‘é isso mesmo, e eu não vou morrer de fome’. A gente trabalha duro para que isso não aconteça”, garante Camila, que ite que a frase de desestímulo sempre vem ao seu ouvido e a “incentiva a correr atrás”. “Sabia que seria uma luta, mas não deu para fugir, está no meu sangue”, define Camila. Músico, Ed Nasque, 35, nutre a mesma relação essencial.
“Tocar, compor, para mim é uma necessidade vital”, resume Ed. Formado em Música pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), ele vive exclusivamente do ofício desde 2017, e, “apesar dos altos e baixos”, nunca mais conseguiu trabalhar com outra coisa. “Por várias vezes, em momentos difíceis, pensei em procurar outra profissão, mas não faz mais sentido na minha vida algo que não seja a arte”, destaca ele, que, desde a infância, tinha a matéria como predileta, sendo “péssimo em exatas”. O mundo deu uma reviravolta em sua cabeça quando, aos 11 anos, a professora de português, numa feira de cultura da escola, ensaiou com a turma a canção que trazia os versos “apesar de você/ amanhã há de ser/ outro dia”. “Anos depois, iniciei os meus primeiros acordes no violão, e não parei mais”, conta Ed, que, em 2021, lançou o álbum “Interior”.
Dramaturga, atriz e diretora, Gabriela Luque, 35, nasceu em um meio privilegiado, onde cinema, teatro e artes plásticas foram estimulados desde que ela se entende por gente. “Aos fins de semana, minha mãe me dava o ‘Gurilândia’ (jornalzinho para crianças dos anos 1990) e dizia para eu escolher uma peça de teatro para irmos. Sei que isso não ocorre com todas as pessoas e que esse incentivo é uma exceção”, sublinha Gabriela. Em 1994, na 1ª edição do Festival Internacional de Teatro de BH, ela e a mãe foram assistir a um espetáculo de rua do grupo francês Générik Vapeur, chamado “Bivouac”. “Morri de medo porque nunca tinha visto nada daquele tipo. Eu tinha apenas 5 anos, e é uma das lembranças mais interessantes que carrego sobre teatro, pois foi a minha primeira experiência de assistir algo que não era, exatamente, para crianças”, observa.
Gabriela assegura que as sensações daquele momento ainda a “provocam em um nível inconsciente”. Desde os 4 anos, ela externava o desejo de ser atriz, e nunca foi podada, “pelo contrário”. Aos 13, ingressou no primeiro curso de teatro e se encontrou. “Ali era o lugar onde eu era mais feliz”, afiança Gabriela, que até tentou outras faculdades, mas jamais se distanciou de sua vocação. “Nasci para pensar e trabalhar teatro, não havia outra escolha para mim”, declara. Formada pela UFMG, ela dirigiu a aclamada montagem “Rua das Camélias”, em 2016, e, no ano ado, tomou a ribalta com o monólogo “Bolo Republicano”. Escritor e cineasta, Felipe Canêdo, 35, cresceu entre o rock progressivo do pai e a MPB da mãe. “Ficava horas mexendo nos discos, arranhei um tanto de bolacha”, confessa Canêdo, que, certo dia, teve uma bela dúvida.
“Minha mãe conta que eu ouvi a Elis Regina (1945-1982) cantando ‘quando eu morrer, me enterre na Lapinha’, e perguntei se ela já tinha morrido e sido enterrada na Lapinha”, diverte-se, em referência à canção de Paulo César Pinheiro e Baden Powell eternizada pela Pimentinha. Ao descobrir a fita-cassete, ele ganhou um sonzinho e logo compreendeu como gravar a voz, criando o seu “primeiro programa radiofônico”. “Meu barato sempre foi contar histórias. Na canção, na poesia, no cinema, na literatura, eu sempre tive esse ímpeto criativo. E cresci numa casa com muitos livros, muito aberta para a cultura, literatura, música”, enumera Canêdo, que recorre ao poeta mineiro Cacaso para definir o que significa ser um artista independente em BH: “é fazer versos por pirraça”. “Escrever é o que sei fazer, não me vejo em outro lugar”, conclui Canêdo.
Críticas ao cenário da capital mineira
Ao longo de sua carreira, que começou profissionalmente em 2015, somente no ano ado Camila Felix teve a oportunidade de trabalhar com patrocínio, como atriz convidada do Grupo Oficcina Multimédia, ao encenar a premiada versão para “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues (1912-1980). “Vivi algo atípico e dei muito valor a isso, pude ter a noção do que é mergulhar de cabeça em um trabalho e receber dignamente, mas é raro. Na maioria das vezes, as condições não são as ideais, o que é muito desgastante”, analisa Camila. Ela considera que Belo Horizonte oferece duas saídas para se viver de arte. “Abrir o leque de opções ou empreender”, diz ela, que também sente falta dos teatros de médio porte na capital.
“Ou são os espaços para quem consegue mover grandes massas ou os muito pequenos, que apenas a própria classe artística a, e aí dá um desespero de não conseguir alcançar a população, tocar as pessoas”, lamenta Camila. Ed Nasque detecta outro problema. “Tenho percebido que os espaços da cidade não são tão democráticos quanto tentam fazer parecer. Trabalho todos os dias nos bastidores, buscando oportunidades de apresentar o meu trabalho, mas pouquíssimas portas se abrem, pois normalmente elas estão abertas para artistas que fazem parte daquela ‘bolha’, e, como não cresci num meio rodeado de artistas, tenho tido dificuldade em me apresentar com frequência, mesmo estando na minha cidade natal”, constata o músico.
A percepção não difere da de Gabriela Luque. “Não se faz teatro sozinha, é preciso montar uma equipe, e, pela minha experiência, sei que se você não tiver uma pessoa com bons contatos, ou cair nas graças e ser apadrinhada por alguma figura importante, é muito difícil, não impossível, veja bem, que seu trabalho tenha alguma notoriedade na cidade, independentemente da qualidade”, critica Gabriela, que enxerga BH como “uma cidade provinciana”. “Há um meio de campo de se ter que conviver com algumas pessoas para ser visto e lembrado. Enquanto mulher cis, mas sei que não é exclusivo para um gênero apenas, ei por várias situações de abuso para que meus trabalhos pudessem ter algum destaque e sei de colegas que aram o mesmo”, denuncia ela.
Felipe Canêdo corrobora a análise. “Até hoje as pessoas dizem que Belo Horizonte é uma roça grande, ou uma roça iluminada, eu acho que é e não é. Porque é uma cidade imensa, mas as pessoas, os artistas, às vezes são provincianos, mesquinhos. Tem gente que morre de ciúmes quando vê um colega com um trabalho que repercute. Em vez de a galera se juntar para fazer a cena crescer, tem uma turma que só pensa no próprio umbigo”, desabafa. Idealizador da produtora Almôndega Filmes, ele se ressente do acolhimento ao “santo de casa”. “E outra coisa é que o belo-horizontino não valoriza tanto o artista local como se faz em outras cidades, como Recife ou Salvador. A gente cultua muito o que vem de fora. Para fazer sucesso, tem que ser reconhecido fora e depois voltar. Digo isso tudo, mas amo BH e nunca quis me mudar pra São Paulo”, diz.
Trupe revela seus projetos para 2024
A bailarina e atriz Camila Felix não esconde que, como artista independente, sempre pensa em procurar outra profissão, o que ela atribui à “instabilidade, principalmente financeira”. A ideia de “ter um plano B” a persegue diariamente. “Mas nunca abandonar a arte, que constitui quem eu sou”. Para se virar, ela atua em musicais infantis, espetáculos de dança contemporânea, ministra aulas, recebe encomendas para coreografias e até já produziu uma simulação realística para escolas de medicina. “O que me leva a não desistir quando bate o limbo é lembrar do estar em cena, do retorno do público. Sou atriz de teatro, então a comunicação com a plateia é instantânea. Essa troca de energia me alimenta”, avalia Camila, que alerta para o “risco da romantização”.
“É uma profissão como outra qualquer, precisamos ganhar salário, reivindicar nossos direitos. O pensamento de se fazer a qualquer preço é bem perigoso, temos que ter o pé no chão também”, sustenta Camila. Ela tem planos alvissareiros para o segundo semestre, como uma peça inédita com Gláucia Vandeveld, Cláudio Dias e Adyr Assumpção, cujos ensaios virtuais começaram na pandemia, e um projeto com o Consulado Italiano, que visa celebrar os 150 anos de imigração no Brasil. Ed Nasque, que, além do trabalho autoral, dá aulas de violão e toca em bares e eventos, acumula composições prontas para lançar o próximo álbum. Entre as novidades, há um poema musicado da escritora Ana Martins Marques, já disponibilizado nas plataformas digitais.
“Se tudo caminhar bem, no segundo semestre entro em estúdio para iniciar o novo trabalho”, promete Ed. A atriz e diretora de teatro Gabriela Luque almeja reapresentar “Bolo Republicano”, pelo fato de a peça falar sobre o golpe civil-militar, que, em 2024, completa 60 anos. “Mas tenho a sensação de que alguns órgãos na cidade sentem certo receio de se falar sobre política de forma tão crua. É a sina que carrego enquanto artista independente e não famosa de optar por trabalhar temas considerados tabus”, aponta. Ao mesmo tempo, ela se organiza para concretizar uma nova peça, que estrearia no mês ado, mas, devido a várias circunstâncias, acabou cancelada. “É um trabalho muito diferente dos meus anteriores, mais maduro, que possui como motor propulsor a vingança e a raiva, sem moralismos de que são sentimentos ruins”, afiança.
Para pagar as contas, a opção que Gabriela e outros colegas de geração encontraram foi “não focar somente na criação teatral, mas trabalhar como professor de teatro, curador, crítico, pesquisadora”. “Assim vamos tentando conciliar o trabalho artístico próprio com uma renda mais fixa que ainda está no escopo do trabalho teatral”, explica. “Levantar uma peça sem lei de incentivo ou patrocínio, para a minha geração, é quase impossível, pois significa trabalhar de graça. Eu já não posso me dispor a trabalhar oito horas por dia sem receber por isso, e percebo, entre meus pares, que a falta ou limitações de recursos acaba gerando uma certa frustração também, pois há o desejo de se colocar trabalhos em pé. E, em algumas leis, parece que não se atentam ao fato de que se produzir uma obra artística é algo custoso, oferecer R$30 mil, R$50 mil, significa pagar mal um coletivo que possui mais de 4 pessoas”, complementa Gabriela.
Escritor e cineasta, Felipe Canêdo recorda o ensinamento do professor de música Kristoff Silva. “Ele me disse uma vez que a arte é que te escolhe, e não você a ela”. “Amo fazer cinema e amo escrever. Acredito muito no que eu faço. Mas eu não sou franciscano, não fiz voto de pobreza”, esclarece. Enfrentando as mesmas dificuldades dos colegas, ele reflete sobre a “difícil vida fácil do artista”. “É um corre danado, mas ninguém tá me obrigando, né? No geral, fazer arte no Brasil hoje é ser empresário de si mesmo, ser produtor, ator, assessor de imprensa, tudo ao mesmo tempo. A uberização chegou em tantos lugares, chegou nas artes também”, compara. Apesar dos pesares, ele resolveu “sair do casulo com tudo”, e acaba de lançar o seu primeiro romance, pela editora Urutau, batizado “Monstera Deliciosa”, e finaliza dois filmes, o média “Amadeu”, sobre Grão-Mestre Dunga, capoeirista mineiro, e “Palimpsesto”, documentário ensaístico que aborda “o ado inflamável do nosso país”, detalha, inquieto, Canêdo.
AMADEU I TRAILER from OLADA on Vimeo.
Mini bio
Camila Felix, 30 anos, @camilafelixcosta
Atriz e bailarina formada pela UFMG
Atuou em “Colóquio Sentimental” e “Vestido de Noiva”
Foi dançarina do grupo Primeiro Ato
Prepara duas peças para 2024, uma sobre a imigração italiana
Ed Nasque, 35 anos, @ednasque
Músico e violonista formado pela UFOP
Lançou o álbum autoral “Interior”, em 2021
Tem parceria com a poeta mineira Ana Martins Marques
Prepara um novo disco de inéditas para 2024
Felipe Canêdo, 35 anos, @almondegafilmes
Escritor, cineasta e jornalista formado pela PUC-MG
É diretor artístico da produtora Almôndega Filmes
Acaba de lançar o seu primeiro romance, “Monstera Deliciosa”
Prepara o média “Amadeu” e o documentário “Palimpsesto”
Gabriela Luque, 35 anos, @luquegabi
Dramaturga, atriz e diretora de teatro formada pela UFMG
Dirigiu a peça “Rua das Camélias” e atuou em “Bolo Republicano”
Trabalhou como assistente de direção no Teatro da Vertigem, em São Paulo
Prepara uma peça inédita baseada nos sentimentos de raiva e vingança