Disfarçada sob a aparência de vinho tinto, a espessura do líquido no interior do cálice é tão vermelha quanto sangue. Amarfanhados a um canto, o paletó e o vestido parecem coreografar uma valsa desordenada, enquanto os sapatos se sobrepõem. A janela retém a ausência como dois olhos fundos, e o tempo segue seu curso interminável. O soneto inverte a imagem, para que o retrato não precise rimar com tamanco, já o rock’n’roll se adapta ao futebol.

Por toda a superfície, a beleza se estende clara, transparente, nua, num cavalo que papagueia outro idioma. Então as comportas se abrem para o fluxo de euforia, e nos lábios viceja a hortelã. Mas o barco da poesia não aporta, permanece suspenso, etéreo, vincando a realidade, como nos mostra Chico Buarque, que completa 80 anos nesta quarta (19), com a sua construção à flor da pele.

“É o maior artista da história da música brasileira, e, talvez, pela longevidade, pelo tamanho e pela importância da obra, o maior da nossa cultura”, resume o jornalista e crítico musical Hugo Sukman, responsável pelos textos de apresentação dos últimos trabalhos musicais de Chico, que, há tempos, abandonou as entrevistas à imprensa. Para comemorar esse expressivo aniversário do compositor, estão previstos vários lançamentos, incluindo livros, discos, espetáculos e série.

O próprio dono da festa coloca na praça, em agosto, o romance de verve autoficcional, na linha felliniana, “Bambino a Roma”, que explora memórias da infância ada na capital italiana, para onde se mudou com a família aos 9 anos, e que, segundo o editor Luiz Schwarcz, traz “o escritor no auge do trabalho literário”. A primeira homenagem veio à lume em março.

Claudette Soares conheceu Chico na década de 1960, período que ela privilegia em “Claudette Canta Chico”. A novidade e o estranhamento ficam por conta de “As Caravanas”, do mais recente álbum de inéditas do músico, de 2017. “Você tem sempre que se atualizar. Eu nunca vivi de ado, o resgato para falar do presente”, afirma Claudette. Entre as dez faixas, estão “Realejo”, “Carolina”, “Bom Tempo”, “Até Pensei”, “Com Açúcar, Com Afeto”, e, ainda, um dueto de abertura em “Cadê Você (Leila XIV)”, parceria com João Donato (1934-2023).

“Sou contralto e falei para não mudar o tom da música que eu ia correr atrás do Chico na gravação. Ele ficou muito emocionado! Tivemos a ideia de trazer de volta os anos 1960 porque ninguém mais gravou, e são músicas maravilhosas!”, justifica Claudette, sem esconder o entusiasmo, que, aos 86 anos, parece repetir o da menina que subia ao piano no João Sebastião Bar, templo da bossa nova paulista, onde ela cantou, pela primeira vez, composições do “eterno ídolo”.

Censura

Com uma iluminação à base de velas, adornada por um grande candelabro, no ambiente que “parecia um castelo de Drácula”, a impressão de terror se dissipava no instante em que a voz de Claudette sussurrava os versos de “Marcha para um Dia de Sol”, que a cantora, “no auge da repressão” da ditadura militar, não teve coragem de interpretar em um festival ao ar livre na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coube a Maricenne Costa, em 1964, gravá-la, tornando-se a primeira a registrar uma música de Chico Buarque em disco.

“Todo LP meu que saía, o Chico ficava curioso para saber se eu tinha gravado a marcha, já pedi desculpas e ainda vou gravar, mas a gente era contratado e tinha que brigar para impor nossa vontade”, diz Claudette. Em 1968, ela lançou o LP “Gil, Chico e Veloso”. Dois anos depois, realizou espetáculo com “Apesar de Você”, previamente proibida dos shows de Marília Pêra e Elizeth Cardoso…

Quis gravá-la em disco, mas o executivo da Som Livre, João Araújo, “ficou com medo de incomodar a censura”. “Isso deu muito problema na época, toda palavra eles achavam ‘subversiva’”, diz Claudette. O tema embasa o livro “O Que Não Tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar”, publicado pelo jornalista Márcio Pinheiro.

“Optei por fazer um recorte que, aproximadamente, vai de 1966 a 1989, tratando a ideia central de que Chico foi o artista brasileiro mais visado pela censura, e de como ele soube enfrentá-la com inteligência e criatividade”, sustenta Pinheiro, cuja “principal descoberta” nesse longo processo de pesquisa foi a de que “muitos censores se portavam como popstars, gostavam da função que desempenhavam, faziam com gosto, diria até que sentiam um certo orgulho”. Hugo Sukman avalia que, “por mero acaso, Chico se tornou inimigo público nº 1 da ditadura”.

A pendenga começou quando ele compôs “Tamandaré”, numa ironia à desvalorização da nota de cinco cruzeiros que estampava o rosto do almirante, entendida pela Marinha como um ataque direto a seu patrono. Ao invés de recuar diante da censura, Chico, então dedicado a remodelar o samba tradicional na linhagem de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Wilson Batista e Ismael Silva, investiu em canções de conotação política, em um revide camuflado por metáforas que não abafavam a contundência lírica do discurso.

Para tanto, contou com o auxílio do dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023), que, em sua histórica montagem de “Roda Viva”, concedeu “caráter político estrito ao que era, originalmente, uma crítica à indústria cultural”, aponta Sukman. A agressão aos atores da peça e a depredação ao teatro por homens portando cassetetes colaborou para o compositor “tornar-se símbolo na luta contra a ditadura”, completa ele.

Lírica

“A partir de então, Chico não teve descanso. Foi perseguido, censurado, vetado, exilado, cortado, e, até, de forma temporária, calado”, observa Pinheiro. Em 1973, durante show no Anhembi, em São Paulo, Chico e Gilberto Gil tiveram os microfones silenciados quando tentaram cantar “Cálice”, parceria de ambos. Traumatizado, Gil nunca mais voltou à canção, que, ao ser liberada, trouxe dueto com Milton Nascimento.

Em 1974, Chico colocou na praça o LP “Sinal Fechado”, interpretando composições alheias, já que as suas eram sempre censuradas. No entanto, disfarçou-se sob o pseudônimo Julinho da Adelaide para lançar o samba “Acorda, Amor”. “Chico, com sua arte, conseguiu criar uma trincheira, e dali enfrentou a ditadura. E o mais relevante é que suas composições não ficaram datadas, podem ser ouvidas com o mesmo prazer 40, 50 anos depois”, avaliza Pinheiro. “Chico Buarque em 80 Canções” vai nessa linha.

O livro do jornalista e pesquisador André Simões pinça, pelo menos, uma canção de cada álbum de Chico, a fim de oferecer análise para “uma mostra representativa da obra”, agregando a clássicos como “Construção”, “O Que Será (À Flor da Pele)” e “A Banda”, outras menos conhecidas, caso de “Uma Canção Desnaturada”, que revela a capacidade do compositor “em emocionar o ouvinte pelo terror das pulsões recônditas, sensibilizando de maneira inusitada”, pontua Simões, que foi guiado pelo desejo de “tentar responder à questão de porquê as canções do Chico são belas”.

“Minha intenção foi transmitir ao leitor os recursos que o Chico utiliza para criar esse repertório em termos musicais, líricos, de arranjo e interpretação, o que há ali que nos emociona tanto”, constata Simões, para quem “a riqueza da obra está na amplitude de camadas”. “Uma canção que está muito ligada ao seu tempo, como ‘Cálice’, sobrevive hoje porque pode ser entendida como manifestação contrária a toda forma de opressão”, exemplifica. O que, segundo o pesquisador, deve-se “ao rigor tanto na criação de imagens poéticas quanto nas técnicas de versificação”.

“Chico é, provavelmente, o nosso letrista mais rigoroso, com domínio das rimas internas, figuras de sonoridade e aliterações, o que não o leva a prescindir da criatividade em relação ao jogo poético, aliando forma e conteúdo, com um encaixe perfeito entre melodia e letra”, enaltece. Simões recupera uma fala de Guinga, parceiro de Chico, “numa única, que já é o bastante” composição, sendo “Você, Você”, de 1998, e que declarou: “Chico não faz letra, ele legenda a música”, exaltando a capacidade de “traduzir o que a música diz…”.

Relançamento de LPs e trilhas para filmes

Para celebrar os 80 anos de Chico Buarque, a Universal Music vai reeditar, em edições comemorativas e luxuosas de LPs, quatro álbuns do artista, a começar por “Vida”, de 1980, com arranjos de Francis Hime, e que congrega sucessos como a ional “De Todas as Maneiras”, a angustiante “Não Sonho Mais”, os sambas “Deixe a Menina” e “Morena de Angola”, este lançado por Clara Nunes (1942-1983), e “Bastidores”, eternizada na voz de Cauby Peixoto (1931-2016), além de “Eu Te Amo” (com Tom Jobim) e “Bye Bye, Brasil” (com Roberto Menescal), feitas para os filmes homônimos de Arnaldo Jabor (1940-2022) e Cacá Diegues, respectivamente. Aliás, a contribuição de Chico para a sétima arte é enfocada em “Na Trilha do Som”, série de Marcelo Janot, e que estreia hoje (17) no Canal Curta!.

Outra contribuição marcante foi com “Os Saltimbancos Trapalhões”, de 1981, quando a trupe de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias aproveitou as versões de Chico para as composições em italiano de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov. O crítico musical Pedro Alexandre Sanches, que não se lembra “de um mundo sem Chico Buarque”, tomou contato com a obra do artista através da irmã mais velha, e, aos 9 anos, adquiriu a sua primeira bolacha do ídolo, “Os Saltimbancos”, de 1977.

“Minhas canções prediletas do Chico são todas desse álbum infantil. Demorei séculos para entender que foram elas que inocularam uma perspectiva marxista no meu modo de ver o mundo, que me incitaram a querer combater os ‘barões’ e a acreditar que ‘todos juntos somos fortes’, sendo esse ‘todo mundo’ qualquer um que não seja, ao mesmo tempo, branco, homem e heterossexual”, elucida Sanches, que destaca “todo impacto daquela fábula”.

Por sinal, “Todos Juntos” abriu a última turnê de Chico, “Que Tal Um Samba?”, dividida com a cantora Mônica Salmaso. Ao contrário das vezes anteriores, o anfitrião iniciou o périplo por João Pessoa, mas não deixou de ar por BH. Bia Paes Leme, vocalista e tecladista da banda de Chico, compartilha a experiência, que ela define como “honra e privilégio”. “Imagina, a gente está ao lado do nosso ídolo, fazendo música da melhor qualidade e ainda se diverte o tempo todo”, garante.

Ela descobriu a música de Chico, “aos 7 para 8 anos”, quando os pais compraram “o álbum azul, aquele das duas caras na capa”, de 1966, estreia do garoto prodígio na indústria fonográfica, famoso pela duplicação de retratos em que o músico surge ora com expressão fechada, outrora sorridente. Canção de 1987, “As Minhas Meninas” comove especialmente Bia pela relação familiar. “Somos três irmãs lá em casa e me tocou ver a angústia profunda transformada em poesia”, declara. Já o músico Hamilton de Holanda escolhe um choro.

No caso, “Falando de Amor”, parceria com Tom Jobim, assim como “Meu Caro Amigo”, com Francis Hime, que “combinam melodia cativante e letra instigante, dentro de uma linguagem muito bonita que é o choro-canção”. O bandolinista acompanha Chico em “Que Tal Um Samba?”, a mais recente inédita do compositor, de 2022, que prenunciava a vitória do presidente Lula.

“Essa música tem uma importância enorme no contexto político do Brasil. Ela reflete questões sociais e políticas de forma poética e crítica, com uma inteligência aguda, mostrando a sensibilidade única do Chico para capturar a essência do momento. E tendo o samba como território para transformações sociais”, salienta Hamilton. “O Chico faz uma leitura do seu tempo, ele é nosso melhor intérprete das visões do inferno e do paraíso que é o Brasil”, arremata o jornalista Hugo Sukman.