SÃO PAULO – É até possível buscar leituras mais sofisticadas para o filme “Anora”, como o surgimento do afeto a partir de lugares improváveis, mas o ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano tem poucas pretensões em sua essência, se contentando, muitas vezes, com a escalada de uma situação a níveis absurdos, ao mesmo tempo nunca ultraando certos limites nessa "falta de limites".
Uma das principais atrações da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa do diretor americano Sean Baker está no meio do caminho entre os filmes de gângsteres que provocam risos e choque pela carga de ultraviolência e uma historinha romântica ao estilo Romeu e Julieta que põe o casal em lados opostos – no caso, uma garota de programa e o filho de um oligarca russo.
“Anora” tem lados A e B. A primeira parte caminha para uma espécie de “Uma Linda Mulher”, em que a stripper que dá título ao filme vira uma espécie de Cinderela, ao encontrar o que pode ser a vida de seus sonhos, ao se envolver com um garoto bobo muito rico, chamado Ivan, que transa de meias e joga videogame após um sexo sem qualquer preocupação em dar satisfação também para a outra parte.
É aí que começamos a ver os problemas de “Anora”. O roteiro brinca com a expectativa de, a qualquer momento, Ivan se tornar um grande cafajeste, a partir de estereótipos envolvendo criminosos russos. O receio de que, ao se entregar sem reservas a esse amor, Anora vire uma escrava sexual, sendo traficada para a Europa, motivada principalmente pela ausência dos pais, desfazendo esse amor “idílico”.
O problema é que, pelo fato de ser uma stripper, o filme pressupõe que ela pode se casar em poucas semanas com alguém que não sabe lhe devolver amor na cama. Anora se satisfaz apenas com as brincadeirinhas e com o dinheiro de Ivan, num retrato que podemos chamar de antifeminista, embora a presidenta do júri no Festival de Cannes tenha sido Greta Gerwig, a diretora de “Barbie”.
O lado B chega com a aceleração dos acontecimentos logo depois que Toros, o tutor de Ivan, fica sabendo, pelos jornais, que Ivan se casou. A cena que estampa esse dispositivo é quando Toros envia dois capangas para tentar resolver a situação. Mas tudo dá errado e o tutor acompanha, pelo viva-voz do telefone, a reação histérica de Anora, batendo nos dois visitantes até ser amarrada ao colo de um deles.
Essas piadinhas sexuais serão recorrentes a partir de então. Na prática, não há violência, mas sim muito berreiro e, se podemos dizer assim, um descontrole controlado. O nariz quebrado de um dos capangas se torna motivo de gags (e elas realmente são engraçadas), enquanto se cria uma nova expectativa, em torno da chegada dos pais do garoto russo, como se um Dom Corleone fosse se materializar.
Mas não a, mais uma vez, de um falso suspense, apenas para deixar a narrativa com um pouco de adrenalina. Para quem espera que, em determinado momento, as coisas irão se descambar, como em filmes de Quentin Tarantino e Guy Ritchie, não deixa de ser frustrante. Não que a violência seja realmente necessária, mas o uso dela poderia incutir um tipo de discussão menos rasa, envolvendo diferenças socioeconômicas.
Mas o filme é uma montanha-russa de Parque de Diversões, chegando de forma segura ao lugar de onde saiu, só mexendo com as reações dos espectadores. Talvez por ser tão “falado” (cheio de diálogos, alguns bons, outros nem tanto) possam creditá-lo como algo acima das produções despretensiosas. Mas a cena final nos faz lembrar que Anora nunca foi a grande protagonista, mas sim as falsas expectativas.
(*) O repórter viajou a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo