TRAUMA

Desistência é preocupação: Interrupção do processo de adoção pode traumatizar crianças

Segundo o CNJ, acontece de pretendentes desistirem de adotar durante o período de convivência

Por Cler Santos
Publicado em 15 de novembro de 2024 | 06:00

O processo para adotar uma criança no Brasil tem trâmites legais que precisam ser respeitados. Após os pretendentes se cadastrarem, arem por avaliação psicológica, fazerem um curso preparatório e indicarem os perfis desejados, há um período de convivência com a criança compatível que pode durar até 90 dias. E é nesse momento que muitas vezes acontecem as desistências, e as crianças voltam para a fila de adoção.

A situação, explica a psicóloga especialista em adoção Aline Santana, pode causar traumas psicológicos a esses meninos e meninas, principalmente quando eles têm 8 anos ou mais e já têm mais noção do que é rejeição.

Não há dados específicos sobre o número de desistências que acontecem por ano no país, conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas Aline afirma que é fundamental que os adotantes estejam seguros de que querem ter uma primeira aproximação com a criança. “Cada criança nessa faixa etária apta para adoção já ou por pelo menos um rompimento de vínculo. Isso faz com que ela comece a acreditar que não merece amor, que vale menos”, conta a psicóloga. 

Para Aline, os casais que participam de um processo de adoção precisam estar conscientes dos desafios que terão e do impacto que as atitudes deles podem causar às vidas das crianças. “Eu acho que não pode fazer campanha só pedindo adoção. É preciso conscientizar as pessoas dos desafios que vêm com as crianças, os traumas que elas têm, para que não haja desistências que sejam mais traumáticas para esses meninos e meninas”, explica.

Para facilitar a adaptação, Aline recomenda que os pretendentes frequentem os grupos de apoio a adoção, espaço aberto para quem deseja adotar ou já ou pelo processo. “É um momento e espaço seguro para trabalhar as questões que você está sentindo, que você está ando com o filho que já chegou ou que vai chegar, de forma coletiva”, esclarece. 

De acordo com o CNJ, são cinco os estágios pelos quais os pais interessados em adoção am: o primeiro é o pré-cadastro no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Depois, eles são dirigidos ao setor técnico das varas da infância e juventude. Em seguida, am por curso preparatório e recebem informações do processo. Em outro momento, são feitas entrevistas com profissionais de psicologia e serviço social. Por fim, o pedido é analisado, e, se aprovado, os interessados são incluídos na fila de adoção.

Na avaliação da juíza da Infância e Juventude de Araguaína, no Tocantins, e membro do Fórum Nacional da Infância e Juventude, do CNJ, Julianne Freire Marques, o processo é rigoroso e busca garantir o melhor para as crianças e os pais interessados. “Não podemos simplesmente entregar uma criança para um casal ou para uma pessoa que queira adotar e deixá-los ali. Temos que fazer um acompanhamento por um tempo para verificar se realmente eles se ajustam um ao outro, para que, então, possa ser deferida a adoção”, conclui.

Adoção mais humanizada

 Juiz da 1ª Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte, José Honório afirma que uma das dificuldades que boa parte dos 35.631 pretendentes a adotar um filho no Brasil tem é a idealização da criança desejada – geralmente com menos de 2 anos, menino e pardo.


“Tem pais que acham que, ao adotar uma criança de até 3 anos, ou bebezinho, eles vão conduzir melhor a criação e a educação desde os primeiros dias de vida. Muitos também acreditam que o vínculo afetivo nesses casos é mais forte, o que nem sempre acontece”, explica.

Para ele, algumas famílias idealizam demais o filho pretendido, sendo que o processo real é complexo. “Pretendente e adotado têm idealizações. A conexão de sonhos muitas vezes não acontece, por conta dessas expectativas”, ressalta Honório.

O juiz reforça que os dois lados precisam se adaptar e se entregar ao processo, para que o sentimento de família seja desenvolvido. Para isso, a coordenadora de projetos do Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte (Gaabh), Kênya Carvalho, entende ser necessário realizar um processo de adoção humanizado, em que os pais, ao encontrarem crianças não exatamente no perfil que esperam, sejam devidamente conscientizados dessa nova possibilidade antes de fazer uma escolha da qual possam se arrepender. 

“Às vezes, um casal busca uma criança de até 7 anos com um perfil, mas ela não ‘existe’. Mas há outra de 14 anos que está no ‘padrão’ desejado pelos pais e que o sistema indica. Eles precisam ter consciência de que, mesmo próximas do perfil desejado, elas são diferentes. Entendendo isso, diminui a chance de desistência”, explica Kênya. 

Para ela, seriam necessários mais técnicos para fazer esse trabalho. “Em Minas são duas varas de infância e seis técnicos atendendo todos os casos. Não tem como fazer um trabalho de qualidade. Eu sou técnica e consigo perceber se a pessoa está familiarizada com a mudança de perfil dela. Tem que acolher a família, entender o porquê da mudança de perfil”, explicou. Procurado pela reportagem, o CNJ não respondeu sobre a necessidade de contratar mais técnicos. 

Disponíveis

Minas Gerais é o segundo Estado com mais crianças disponíveis para adoção no país (641), atrás apenas de São Paulo, com 1.158. Em seguida está o Rio Grande do Sul, com 563 crianças.

Casais homoafetivos


De acordo com o CNJ, adoções feitas por casais homoafetivos contribuíram para o aumento do número de meninos e meninas que ganharam um novo lar. Em Minas, em 2021, foram 16 crianças. Já em 2022, subiu para 39. Em 2023, o número disparou para 55 adoções. O juiz da 1ª Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte José Honório acredita que a adoção por casais homoafetivos é uma tendência que cresce a cada ano. “Isso acontece muito por conta dos incentivos à adoção sem rótulos, mostrando que, para ser família, basta ser disponível”, destaca. 

 

Infografia: Hélvio